quarta-feira, 31 de julho de 2024

A Bahia Decidiu a Forma Atual do Brasil

 Qual Foi a Importância de Santo Amaro da Purificação na Resistência Baiana? Por Que a Bahia Comemora em Outro Dia a Independência do Brasil? Quais Foram as Contribuições do General Labatut e do Comodoro Delamare na Guerra da Independência Travada na Bahia?

 




Nenhum estado brasileiro comemora a Independência do Brasil com tanto entusiasmo quanto a Bahia e as diferenças começam pelo calendário. O feriado de Sete de Setembro é ignorado pela maioria dos baianos e a festa acontece no dia 2 de julho, data da expulsão das tropas portuguesas de Salvador em 1823. Mas, os baianos têm bons motivos para celebrar, pois eles foram os brasileiros que mais lutaram e sofreram pela Independência.

A guerra contra os portugueses na Bahia durou 1 ano e meio, mobilizando mais de 16.000 pessoas só do lado brasileiro e custou centenas de vidas. Foi ali também que o Brasil correu o mais sério risco de se fragmentar, pois após a expulsão das tropas do general Jorge Avilez do Rio de Janeiro (fevereiro de 1822), a metrópole portuguesa decidiu concentrar em Salvador todos os seus esforços militares.

O objetivo era dividir o Brasil. As regiões Sul e Sudeste ficariam sob o controle do príncipe regente e, o Norte e o Nordeste, permaneceriam portugueses. A metrópole alimentava a esperança de que, uma vez dominada a Bahia, suas tropas poderiam atacar o Rio de Janeiro e dali recuperar as demais províncias. A Bahia era um ponto estratégico para a consolidação do império brasileiro.

Terceira província mais populosa – depois de Minas Gerais e Rio de Janeiro – tinha 765 mil habitantes, dos quais 524 mil eram escravos. Uma das cidades mais movimentadas do mundo, Salvador concentrava uma importante indústria naval e era um grande centro exportador de açúcar, algodão, tabaco e outros. No entanto, sua principal atividade era o tráfico negreiro.

Ao amanhecer de 19 de fevereiro de 1822, os moradores foram acordados ao som de tiros na região mais alta da cidade. Era uma rebelião de militares brasileiros contra uma decisão das cortes de Lisboa. O brigadeiro Manuel Pedro de Freitas Guimarães, brasileiro e simpático à causa de D. Pedro, seria substituído no comando das tropas da Bahia pelo general português Ignácio Luís Madeira de Melo.

Madeira de Melo era um veterano nas lutas contra Napoleão em Portugal e conhecia bem o Brasil, pois já havia comandado unidades militares em Salvador e em Santa Catarina. Semianalfabeto, tinha fama de durão e honesto. O problema é que as virtudes do novo governador se limitavam à sua honestidade e dureza no tratamento com os subordinados. Não tinha sensibilidade nem paciência para entender a situação política que se estabeleceu na capital baiana.

No seu entender, a única alternativa de Portugal naquele momento era o uso da força militar contra os baianos, mas o seu estilo acirrou os ânimos já exaltados da população. Na rebelião de 19 de fevereiro, centenas de oficiais, soldados, milicianos e civis favoráveis à Independência se aquartelaram no Forte São Pedro e, no começo da tarde do dia seguinte, um mensageiro do general Madeira apresentou-se exigindo a rendição dos revoltosos. Coube a Francisco Sabino da Rocha Vieira dar a resposta: _ “Não nos entregaremos”.

Irritado com a resposta, Madeira de Melo mandou bombardear o quartel rebelde e, enquanto isso, portugueses e brasileiros se enfrentavam nas ruas de Salvador. Saques, tumultos e quebra-quebras tomaram conta da cidade e, em quatro dias, de 200 a 300 pessoas foram mortas. E, sem condições de resistir ao bombardeio português, no dia 20 de fevereiro os brasileiros abandonaram o Forte São Pedro, usando cordas e lençóis para descer até o fosso. Dali se esgueiraram pelo matagal para fugir de Salvador e organizar a resistência no Recôncavo.

Assustados com a violência, centenas de civis seguiram o mesmo caminho. Em poucos dias, as vilas e fazendas do Recôncavo se transformaram em imensos campos de refugiados brasileiros. O restante da Bahia aderiu em peso à Independência do Brasil formando um cinturão de isolamento aos portugueses encastelados em Salvador. A primeira vila do Recôncavo a se pronunciar foi Santo Amaro da Purificação, pois no dia 14 a Câmara dessa cidade se reuniu para produzir um documento memorável.

Os vereadores da cidade elaboraram um programa de governo para o Brasil independente, pedindo que o novo país organizasse um Exército, uma Marinha de Guerra, um Tesouro Público e um Tribunal Supremo de Justiça. Propunham também uma junta de governo eleita pelo povo. Defendiam tolerância religiosa, a criação de uma universidade e a atração de investidores e capitais estrangeiros para estimular a indústria nacional.

Na semana seguinte, o coronel de milícias José Garcia Pacheco reuniu 100 homens armados em Santo Amaro e marchou para a vizinha Cachoeira. Foi recebido com entusiasmo pela população. Na manhã de 25 de junho, a câmara de Cachoeira reconheceu a autoridade do príncipe regente D. Pedro. Os moradores se reuniram para comemorar na praça, onde foi feita a leitura da ata dos vereadores.




Porém, a festa foi interrompida por tiros disparados de uma canhoneira portuguesa estacionada no Rio Paraguaçu. Umm tiro ricocheteou na coluna de uma casa e matou um soldado que tocava tambor no meio da multidão. O tiroteio continuou durante 3 dias. Na primeira noite a canhoneira despejou rajadas de metralhadora sobre as casas dos brasileiros e, quando o dia amanheceu, a situação se inverteu.

Uma improvisada flotilha de canoas e pequenos barcos de pesca cercou a canhoneira e, na falta de equipamentos mais modernos, usavam espingardas de caça e um antigo canhão, exibido – até então – como relíquia na praça da cidade. Sem comida e munição o comandante português e seus 26 marinheiros se renderam.

As notícias dos acontecimentos na Bahia repercutiram em todo Brasil e, na manhã de 21 de maio de 1822, os baianos residentes no Rio de Janeiro mandaram celebrar uma missa na igreja de São Francisco de Paula pelos mortos de fevereiro. D. Pedro, e a princesa Leopoldina compareceram em roupas de luto. O Príncipe tentou repetir com o general Madeira de Melo a bravata que encenou contra o general Avilez na semana do “Dia do Fico”. Em uma carta régia ordenou “como príncipe regente desse Reino, do qual jurei ser defensor, que embarqueis para Portugal com a tropa que dali tão apoliticamente foi mandada”.

Madeira de Melo fez de conta que não era com ele e, em vez de acatar as ordens do príncipe, fortificou a capital baiana, decretou lei marcial e ficou aguardando os reforços prometidos por Lisboa. Do lado brasileiro, a euforia dos momentos iniciais deu lugar à preocupação. Apesar do entusiasmo das decisões em Santo Amaro, faltavam recursos e organização ao exército brasileiro.

Na tentativa de dar alguma ordem ao caos, no dia 6 de julho as autoridades do Recôncavo decidiram criar um conselho com o objetivo de arrecadar fundos, recrutar voluntários e organizar a distribuição de munições. O comando das operações foi entregue ao tenente-coronel Felisberto Gomes Caldeira – primo do general Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira e Horta, representante do Brasil em Londres e futuro Marquês de Barbacena.

Batalhões de voluntários foram recrutados entre agricultores pobres, escravos e crioulos plantadores de cana. A tarefa de organizar esse exército irregular, indisciplinado e carente coube a um oficial estrangeiro – o general francês Pierre Labatut.

Labatut partiu do Rio de Janeiro para a Bahia em julho de 1822 com uma pequena frota sob o comando do Comodoro Rodrigo Delamare, levando mosquetes, canhões, pólvora e 274 oficiais. Delamare tinha ordens de desembarcar o general francês no Recôncavo e entregar as armas e munições às forças brasileiras. Em seguida, deveria bloquear a entrada da baía de Todos os Santos para evitar que Madeira de Melo recebesse reforços de Portugal.

Ao se aproximar de Salvador, a frota brasileira foi interceptada por 6 navios de guerra lusitanos. Sem ânimo para entrar em combate, Delamare decidiu mudar os planos e seguir para Maceió. Desembarcados no litoral alagoano Labatut e seus oficiais seguiram até o Recife, onde recrutaram mais homens e só então marcharam para a Bahia.

Mal a frota de Delamare sumiu no horizonte, o navio Calypso – trazendo 700 soldados de Lisboa – entrou no porto sem ser molestado. Ao chegar à Bahia, Labatut estabeleceu o quartel-general na localidade de Engenho Novo e deu um ultimato a Madeira de Melo, o qual ignorou solenemente.

Labatut comandou as forças brasileiras por 10 meses, mas a nomeação de um oficial estrangeiro para um cargo tão importante causou desconforto na Bahia. O general mal falava o português e insistia em alistar escravos nas tropas, medida que os senhores de engenho temiam. Cercado de intrigas, Labatut acabou preso e destituído do comando pelos seus próprios oficiais, cinco semanas antes do final da guerra.

A glória de entrar em Salvador à frente das tropas brasileiras em julho caberia ao coronal José Joaquim de Lima e Silva – tio do jovem Luís Alves de Lima e Silva, futuro Duque de Caxias e atual patrono do Exército brasileiro. Labatut ainda combateu sob as cores do império nas revoltas que se seguiram à Independência no Ceará e na Revolução Farroupilha do Rio Grande do Sul. Promovido a Marechal, morreu aos 73 anos em Salvador.

Mais bem-organizados depois da chegada de Labatut, os brasileiros ainda assim preferiram evitar um confronto direto com os portugueses. Em vez disso, eles decidiram cerca-los na capital, impedindo que recebessem armas, munições e alimentos. Madeira de Melo só poderia receber ajuda pelo mar e isso aconteceu durante alguns meses, embora fosse uma operação cara e arriscada. Enquanto as forças brasileiras cresciam em número e entusiasmo, o comandante português ficava cada vez mais ilhado e refém da ajuda de Lisboa.

Em maio de 1823, também essa rota de suprimentos seria fechada com a entrada em cena do Almirante Cochrane e sua esquadra de mercenários e patriotas brasileiros. Por duas vezes os portugueses tentaram romper o cerco e a primeira ocorreu em novembro de 1822 em Pirajá, a 10 quilômetros de Salvador. O resultado foi a maior batalha dessa guerra, pois o confronto durou 10 horas e envolveu 10 mil brasileiros e portugueses.

A Batalha do Pirajá deu origem a um mito – a do corneteiro Luís Lopes. Segundo relatos de historiadores ([1]), a certa altura do confronto os brasileiros estavam em desvantagem e, acreditando que a batalha estava perdida, o major José de Barros Falcão de Lacerda ordenou a Luís Lopes o “toque de recuar”.

Por engano, o corneteiro fez exatamente o contrário e inverteu o toque para “cavalaria, avançar e degolar”. O toque assustou os portugueses que teriam fugido, dando a vitória ao exército brasileiro, mas essa façanha jamais foi comprovada. Uma 2ª tentativa de romper o cerco brasileiro ocorreu em janeiro de 1823. Foi um ataque à Ilha de Itaparica, comandado pelo chefe da armada portuguesa – almirante João Félix Pereira de Campos.

De uma só vez, os portugueses lançaram 40 barcas, 2 barcos de guerra e lanchas canhoneiras contra a Fortaleza de São Lourenço e o povoado de Itaparica. Foi a batalha do “tudo ou nada”, pois uma tomada da ilha teria aberto um rombo na linha de defesa brasileira ao redor da baía de Todos os Santos. Os baianos resistiram e alcançaram a vitória ao final de 3 dias e as baixas portuguesas foram pesadas – cerca de 500 mortos no total.

O dia 2 de julho amanheceu radiante em Salvador, pois ao acordar, os moradores souberam que os portugueses haviam partido de madrugada. O fracasso nas investidas de Pirajá e Itaparica tinha selado o destino de Portugal e, apesar da pressa do embarque, Madeira de Melo não deixou ninguém para trás. Ao partir, levava entre 10 mil e 12 mil pessoas; ou seja, o mesmo número que havia cruzado o Atlântico rumo a Salvador 13 anos antes com a família real portuguesa.

Os primeiros soldados brasileiros entraram na cidade ainda pela manhã e, nem de longe, lembravam um exército vitorioso. Eram “homens descalços e quase nus”. Eles foram recebidos com festa pelos moradores e ainda hoje são lembrados todos os anos no dia 2 de julho e, diante disso, pode-se afirmar que a Bahia decidiu o futuro do Brasil na sua forma atual.

 

 

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([1]) Tobias Monteiro. “História do Império: a Elaboração da Independência”. vol. 2, p. 590



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