Qual Era
o Perfil de D. Pedro I e de Seu Irmão D. Miguel? Por Que Houve Confronto Entre
Liberais e Absolutistas em Portugal? Como se Desenrolou a Guerra Entre Ambos os
Irmãos? Quem Saiu Vencedor?
Quando eram adolescentes no Rio de Janeiro, os irmãos
D. Pedro I e D. Miguel tinham como brincadeira favorita os jogos de guerra. O
pintor Jean-Baptiste Debret conta que os príncipes “organizavam e comandavam
exércitos formados pelos filhos dos escravos, que se enfrentavam na Quinta da
Boa Vista – onde moravam – ou na Real Fazenda de Santa Cruz, onde passavam as
férias. Em 1832, essa brincadeira se tornaria realidade, pois nos dois anos
seguintes, os 2 irmãos protagonizaram a mais longa e cruel guerra civil da
história de Portugal.
O confronto entre os liberais – sob o comando de D.
Pedro – e os absolutistas liderados por D. Miguel, deixou milhares de mortos e
abriu feridas que demoraram mais de um século para cicatrizar. Diferentes em
tudo, os irmãos nasceram com os sinais trocados em relação aos pais, pois D.
Pedro era o preferido de D. João e herdou a índole mãe – Carlota Joaquina –
porque ele era ativo, irrequieto, aventureiro e namorador.
D. Miguel – protegido de Carlota – tinha o caráter do
pai, pois ele era menos impulsivo que o irmão, apegado à etiqueta, à tradição e
ao protocolo. Seus traços físicos alimentavam rumores de que tivesse
inclinações homossexuais, suspeita que também acompanhara o pai no Brasil. ([1])
Outra diferença curiosa entre os dois é que D. Miguel,
ao contrário de toda a descendência dos Bragança, não gostava de canja de
galinha nem de franguinhos passados na manteiga, a iguaria favorita de D. Pedro
e de seu pai (D. João). Seu prato predileto era a carne de caça. Até a sua
filiação era colocada em dúvida, pois D. Miguel nasceu em 1802 quando o
casamento dos pais já andava estremecido.
Rumores nunca comprovados, o apontavam como resultado
de um romance entre Carlota Joaquina e D. Pedro José de Meneses Coutinho, de
quem teria herdado os traços físicos e o gosto pela equitação. Diferentes na
aparência, no caráter e nos gostos pessoais, os irmãos também divergiam na
política, pois D. Pedro era maçom, admirador de Napoleão Bonaparte e leitor dos
iluministas franceses. Ele foi um monarca liberal e modernizador das leis e dos
costumes do seu tempo. Ao contrário, D. Miguel era conservador, avesso ao
regime constitucional e adepto do absolutismo real.
Desde a morte de D. João VI em 1826, a crise política
portuguesa tinha se agravado e, duas providências tomadas por D. Pedro ainda no
Rio de Janeiro, dividiram Portugal ao meio. Tão logo soube das decisões de
anistia aos presos políticos e a outorga de uma constituição liberal, o
governador da cidade do Porto aderiu aos liberais e enviou uma delegação a
Lisboa para exigir o imediato juramento da nova Constituição.
Os absolutistas reagiram com levantes militares em
várias cidades e, esperançoso de uma solução pacífica, D. Pedro nomeou o irmão
regente de Portugal impondo duas condições: _ D. Miguel deveria jurar a nova
Constituição e se casar com a sobrinha e legítima herdeira do trono, Maria da
Glória, que se tornaria a rainha de fato quando atingisse a maioridade.
Aparentando aceitar as exigências do irmão, D. Miguel
deixou o exílio em Viena e desembarcou em Lisboa no dia 22 de fevereiro de
1828, sendo recebido em triunfo pelos absolutistas. Na condição de regente,
dissolveu câmaras, demitiu o ministério, proibiu a execução do hino
constitucional, afastou os governadores liberais e convocou as cortes para
decidir quem assumiria o trono no lugar de D. João VI. E, em julho de 1828, ele
próprio foi declarado legítimo rei.
Entronizado com o nome de D. Miguel I, o novo rei
tinha o apoio da nobreza, cujos interesses eram ameaçados pelos liberais e da
Igreja Católica, que o via como a salvação contra as sementes anticlericais
plantadas pela Revolução Francesa. Nos meses seguintes à aclamação de D.
Miguel, o clima de terror se instalou entre os portugueses e, em março de 1829,
havia 23.190 pessoas na prisão. Outras 40.790 tinham emigrado para a América ou
países vizinhos. Forcas foram erguidas para executar os adversários e estima-se
que 1.122 opositores tenham sido assassinados.
Incapazes de resistir à onda absolutista, o general
Saldanha e os demais chefes liberais do Porto fugiram para a Inglaterra e a
Espanha, de onde começariam a tramar a derrubada do novo rei. Em julho de 1828,
uma revolta liberal irrompeu na Ilha Terceira – nos Açores – que se converteria
em santuário de resistência contra o absolutismo. Para lá se transferiram os
líderes refugiados na Inglaterra.
Os acontecimentos em Portugal reacenderam em D. Pedro
I – já impopular e desprestigiado no Brasil – a conhecida atração pelos grandes
desafios. Aos 23 anos havia se tornado o herói do novo mundo ao proclamar a
Independência. Agora, era sua terra natal que o atraía e fascinava. A causa
oferecia oportunidades de glória e a guerra contra D. Miguel seria o seu último
ato como homem de duas pátrias. Pela causa de sua filha – Maria da Glória – D.
Pedro gastaria os últimos três anos de sua vida.
Em meados de 1828, ainda sem saber do golpe encabeçado
pelo irmão, D. Pedro decidiu enviar Maria da Glória para Viena, onde ficaria
aos cuidados do avô – Francisco I – até a época do casamento com o tio. A
princesa zarpou do Rio de Janeiro sob a proteção do Marquês de Barbacena, até
essa época ainda um fiel aliado do imperador brasileiro.
Ao chegar a Gibraltar, Barbacena tomou conhecimento
das notícias em Portugal e decidiu mudar os planos. Desconfiado de um apoio do
governo austríaco a D. Miguel ele levou Maria da Glória para a Inglaterra e,
depois de 6 meses, devolveu-a ao pai no Rio de Janeiro.
Depois de abdicar o trono brasileiro em 1831, D. Pedro
assumiu o título de Duque de Bragança e desembarcou na Europa em busca de apoio
para a guerra contra o irmão. À primeira vista, o cenário lhe parecia
favorável, pois na França, o novo rei liberal – Luís Filipe – era seu primo. A
Inglaterra também passara por mudanças: o conservador Lord Wellington, herói da
vitória contra Napoleão, fora substituído na chefia do ministério por Lord
Grey, simpático à causa liberal.
Ao cair, Wellington estava inclinado a reconhecer D.
Miguel como legítimo governante de Portugal. O novo gabinete decidiu adiar a
decisão e dar alguma chance aos opositores comandados por D. Pedro. O Duque de
Bragança foi homenageado com deferência em Londres e em Paris, mas nenhum dos
dois governos concordou em dar-lhe o suporte necessário, obrigando-o a iniciar
a campanha contra seu irmão em condições precárias. Ao partir dos Açores em 27
de junho de 1832, comandava um exército que tinha em suas fileiras 2 futuros
escritores e poetas famosos, mas cujas perspectivas de vitória pareciam
remotas.
A tropa era composta de 7.500 voluntários e muitos deles
sem treinamento militar, enquanto que o exército de D. Miguel somava uma força
10 vezes maior. Restou a D. Pedro gastar parte da fortuna que acumulou no
Brasil e, ainda nos Açores, autorizou o saque de 12.000 libras esterlinas de
sua conta no Banco Rothschild para financiar as despesas do exército.
Ao anoitecer de 7 de julho de 1832, as sentinelas miguelistas postadas na aldeia de pescadores do rio Douro flagraram na linha do horizonte as velas da esquadra liberal, que se aproximava da costa portuguesa. Tambores anunciaram a novidade a todos os moradores e, o local escolhido para desembarque, era uma praia de areia grossa batida, alguns quilômetros ao norte do Porto.
Para os moradores foram horas de tensão e medo, pois
todos acreditavam que a 2ª cidade mais importante do país seria atacada pelos
liberais e que o exército miguelista a defenderia até o último homem.
Curiosamente não foi o que aconteceu, pois os
miguelistas evacuaram o Porto sem trocar tiros com a minguada força liberal que
se aproximava. Isso permanece como o maior mistério da guerra civil portuguesa.
Os oficiais de D. Miguel não apenas deixaram de proteger a cidade, como ali
abandonaram milhares de armas e munições – incluindo 50 canhões. Se os
absolutistas tivessem mantido suas posições, a derrota de D. Pedro estaria
selada logo de início. Ao desembarcar, o exército liberal estava exausto e
faminto, a artilharia não passava de um obus e 2 canhões, os quais eram puxados
pelos próprios soldados.
Os historiadores levantaram três possíveis explicações
para o comportamento dos absolutistas. Na primeira hipótese, teriam como
objetivo isolar os liberais no Porto, transformando a cidade numa ratoeira, da
qual só sairiam mortos. A 2ª estaria relacionada a supostas simpatias do
principal comandante miguelista – o Visconde de Santa Marta – à causa de D.
Pedro e, a terceira hipótese, seria a incompetência pura e simples, das quais
os oficiais de D. Miguel dariam, renovadas provas ao longo da guerra.
Na falta de um cavalo, D. Pedro entro no Porto cavalgando
um burro que um simpático morador providenciou no percurso entre a praia e a
cidade. Era a sina que o acompanhava nos momentos de glória, pois tinha sido um
animal como esse que fizera o Grito do Ipiranga, dez anos antes. As forças da
praça Nova foram desmontadas, os presos libertados e o carrasco – odiado pela
crueldade – foi executado a tiros de espingarda.
Porém, os moradores reagiram com um misto de alívio e
apreensão. A cidade celebrava a chegada do exército liberal, mas sabia que o
futuro era incerto e perigoso. E os temores logo se confirmaram, pois o que
parecia um passeio, se transformou rapidamente em pesadelo. As forças
miguelistas abandonaram a cidade, mas não a guerra, pois após o primeiro recuo
fecharam um arco em torno do Porto, impedindo a entrada de pessoas, armas,
munições e alimentos.
Os liberais tinham de fato caído em uma ratoeira e, os
meses seguintes foram de fome, doença e muito sacrifício. Esfomeados, soldados
(e moradores) caçavam cães, gatos, burros, cavalos e roedores em terrenos
baldios. A madeira das casas era usada para acender fogueiras a fim de amenizar
o frio. Em março. O soldo da tropa já estava atrasado 9 meses e uma epidemia de
cólera dizimou milhares de pessoas.
Em meio a tudo isso, D. Pedro se revelou um chefe
militar dedicado e carismático que haveria de ficar para sempre na memória da
cidade do Porto. Cabia ao rei-soldado cuidar da defesa da cidade e alimentar 60
mil habitantes. Nos dias chuvosos de inverno, percorria a cidade a pé, usando
um capote militar até os pés, que o protegia do frio.
Incansável e hiperativo, envolvia-se em tudo, descendo
às trincheiras, orientando os atiradores, supervisionando os armazéns,
visitando hospitais e feridos e participando das reuniões para a tomada de
decisões.
Às vezes, até se expunha a riscos desnecessários, pois
uma vez uma bala disparada da margem oposta do rio Douro matou um oficial que
estava a seu lado. Outra ricocheteou na parede da igreja e passou de raspão
pela cabeça do imperador. Mas, apesar da situação aflitiva, ainda encontrava
tempo para passear, se divertir e namorar. Ao partir para a guerra, havia
deixado a imperatriz Amélia e as duas filhas – Maria da Glória e Maria Amélia –
na França.
Mais tarde, incomodadas com o tratamento pouco cortês
recebido das autoridades francesas, as três se transferiram para a Inglaterra.
Distante da mulher 19 meses, envolveu-se com uma freira de 23 anos – Ana
Augusta Peregrino Faleiro Toste – a qual deu à luz o último filho bastardo de
D. Pedro, um menino que, batizado com o mesmo nome do futuro Pedro II do Brasil
– Pedro de Alcântara – morreu cedo e foi sepultado com honras.
Iniciado em julho de 1832 o “Cerco do Porto” durou até
o final do ano seguinte e, ao todo, os miguelistas fizeram 29 ataques, alguns
repelidos de forma desesperada pelos liberais quando os adversários já ocupavam
as ruas e praças da cidade. O total de mortos entre os liberais foi de 2.792
soldados, de acordo com o coronel Owen.
Ou seja, de cada 2 voluntários que haviam embarcado
com D. Pedro nos Açores, um morreu. Porém, o exército miguelista teve baixas
muito maiores, pois 23.004 homens morreram. Os civis foram cerca de 3 mil, dos
quais mil atingidos pelo fogo dos canhões e fuzis e 2.000 de doenças.
Em meio à carnificina houve também episódios
pitorescos e um deles foi o fiasco de um poderoso canhão doado a D. Miguel por
João Paulo Cordeiro. Batizado de “mata-malhados”, em referência aos liberais
que eram conhecidos por “malhados”, o canhão foi levado em procissão de Lisboa
ao Porto durante várias semanas.
De tão pesado, eram necessárias 13 juntas de boi para
arrastá-lo. Posicionado às margens do rio Douro com o cano apontado para o
centro da cidade do Porto, logo no 1º tiro revelou-se uma decepção. O disparo
era tão potente que estourava os tímpanos dos artilheiros.
Calibrá-lo exigia enorme esforço físico, a tal ponto
que os militares desistiram de usar toda a sua capacidade de tiro e passaram a
carrega-lo com apenas meia carga de pólvora. Ao fim de alguns dias, tornara-se
tão inofensiva que virou motivo de piada entre os moradores do Porto.
O cerco foi rompido graças a uma rápida sequência de
acontecimentos que mudaram os rumos da guerra em menos de 2 meses. Em Londres,
o embaixador informal dos liberais (D. Pedro de Souza Holstein) conseguiu dos
ingleses o apoio que D. Pedro buscava desde o começo.
Em 1º de junho de 1833, cinco navios de guerra a vapor
britânicos, comandados pelo almirante Charles Napier, apareceram na foz do rio
Douro trazendo peças de artilharia, 150 marinheiros e 322 soldados bem
treinados. Três semanas depois, Napier desembarcou no Algarves (ao sul do
território português) com 2.500 soldados, avançando rapidamente pelo Alentejo
em direção a Lisboa, enquanto no mar ele obtinha uma vitória memorável ao
destruir a esquadra de D. Miguel perto do cabo de São Vicente.
Em seguida, seus navios entraram no rio Tejo e
bloquearam a capital que, sem resistência, foi ocupada no dia 24 de junho. No
dia 28, D. Pedro deixou a cidade do Porto em direção à capital, onde foi
recebido em triunfo. No entanto, a guerra em Portugal ainda estava longe de
terminar, pois D. Miguel refugiou-se em Santarém e dali passou a comandar a
resistência. A capitulação só veio em 26 de maio de 1834 e, pelos termos da
rendição, D. Miguel pôde partir em segurança para o exílio, agora em caráter
definitivo.
Mesmo depois da capitulação, os absolutistas imporiam
um derradeiro sacrifício aos moradores da cidade do Porto, pois ao se retirarem
da cidade – na noite de 16 de agosto de 1834 – os miguelistas incendiaram os
armazéns da Companhia de Vinha do Alto Douro, onde estavam guardadas 17 mil
pipas de vinho e 500 de aguardente. O objetivo era evitar que o estoque fosse
vendido aos ingleses para financiar a reconstrução nacional planejada pelos
liberais. O prejuízo de 2.500 contos de réis foi um duríssimo golpe nas já
combalidas finanças nacionais.
Ao final da guerra o coronel Owen fez uma lista de
vinte fatores que contribuíram para o triunfo liberal contra todas as
adversidades. A vitória no começo da campanha era tão improvável que Owen batizou
a sua lista de vinte milagres. A lista incluía a mudança de cenário político na
Europa, a incompetência dos ministros e oficiais de D. Miguel, a energia sem
paralelo dos habitantes do Porto e, além disso, “a milagrosa conservação da
existência de D. Pedro, que durou o tempo necessário para a execução de seus
planos, sob padecimento de uma moléstia mortal”.
Sua obra modernizadora das leis e dos costumes
aprofundou-se ao fim da guerra contra o irmão. De um lado, agiu com rigor ao
confiscar bens da Igreja Católica, extinguir o dízimo que sobrecarregava as
atividades econômicas e, por fim, expulsar de Portugal autoridades
eclesiásticas que haviam apoiado a causa absolutista.
De outro lado, impediu a vingança dos liberais que
defendiam penas de morte para os derrotados e, em vez disso, concedeu anistia e
permitiu que o irmão partisse para o exílio. Era seu traço característico –
impor-se primeiro e contemporizar depois. Ou seja, “ele vencia para perdoar” ([2]).
Mas, o povo português não se conformava com o
tratamento generoso dispensado aos homens que tantos sofrimentos haviam
impostos ao país e, certa noite, ao chegar ao teatro em Lisboa, D. Pedro foi
cercado pela multidão enfurecida, a qual atirava pedras em sua carruagem.
A plateia o recebeu com demorada vaia e, pálido, o
imperador teve um acesso de tosse. Surpresa com a cena a multidão fez um
profundo silêncio. D. Pedro guardou o lenço e, com a voz rouca, ordenou que o
espetáculo seguisse. Era o prenúncio do fim de uma vida.
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([1]) Revista “Gosto”. José
A. Dias Lopes, Ed 1, julho 2001. p. 54
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