Que Fatos
Precipitaram a Ruptura Entre Portugueses e Brasileiros, em Setembro de 1820?
Quais Foram as Consequências Para o Brasil da Revolução Liberal do Porto? Por
Que D. João VI Aceitou Abrir Mão da Sua Autoridade em Favor de um Congresso?
Até as vésperas do Grito do Ipiranga, eram raras as vozes entre os brasileiros que apoiavam a separação completa entre Brasil e Portugal. A maioria das pessoas defendia a manutenção do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, na forma criada por D. João em 1815. Esse era o tom das proclamações do Príncipe Regente, dos discursos dos deputados brasileiros em Lisboa e também a linha dos editoriais do jornalista do Correio Braziliense, o principal formador de opinião da imprensa brasileira.
Foram o radicalismo e a falta de sensibilidade
política das cortes portuguesas (pomposamente intituladas de Congresso
Soberano) que precipitaram a ruptura. Convocadas em setembro de 1820, as cortes
só começaram a se reunir em Lisboa em janeiro do ano seguinte. Antes foi
necessário proceder às eleições dos deputados, que viriam de todos os confins
do império português. O número de representantes seria proporcional à população
de cada região, mas os escravos estavam excluídos.
Embora contasse 4,5 milhões de habitantes, o Brasil
teve direito a ocupar somente 72 das 181 cadeiras, cabendo a Portugal 100
deputados. As demais províncias – Angola, Moçambique e os arquipélagos da
Madeira e dos Açores – ficaram com as nove cadeiras restantes. Mesmo assim,
somente 46 brasileiros tomaram posse em Lisboa. Os demais permaneceram no
Brasil por dificuldades de locação ou divergências dentro da delegação.
Caso tivesse prevalecido a proposta brasileira, o
império lusitano se converteria numa entidade semelhante ao da “British
Commonwealth”, a comunidade dos países que compunham o Império Britânico e que
concordaram em manter a rainha da Inglaterra como símbolo, mesmo depois de
conquistar a autonomia – caso da Austrália, Nova Zelândia e Canadá. O Brasil
tinha interesse na manutenção do Reino Unido por razões econômicas e, antes
mesmo da fuga da família real para o Rio de Janeiro, a colônia já havia se
tornado a mais rica e influente porção dos domínios portugueses.
As notícias da Revolução Liberal do Porto ocorrida em
agosto de 1820, tinham sido recebidas com entusiasmo no Brasil e se alastraram
rapidamente no país. O Pará foi a primeira província a aderir à causa
constitucional e a novidade chegou a Belém no navio Amazonas em dezembro de
1820. O portador era o estudante de Direito Alberto Patroni Martins Maciel
Parente, da Universidade de Coimbra. Ele trazia na bagagem uma tipografia que
daria origem ao primeiro jornal editado no Pará – “O Paraense” – lançado cinco
meses mais tarde.
As semanas seguintes foram de grande agitação em
Belém, cidade de doze mil e quinhentos habitantes, dos quais cinco mil e
oitocentos eram escravos. Uma conspiração liderada por Patroni explodiu em 1º
de janeiro de 1821, durante a parada militar celebrada no Ano-Novo, no centro
da cidade. O alferes de milícias Domingos Simões Cunha se adiantou de seu lugar
e, diante do coronel João Pereira Vilaça, comandante do 1º Regimento de
Infantaria, disparou três “vivas”. Nos dois primeiros não havia novidades, mas
o terceiro mudava tudo:
_ “Viva a Religião Católica” Viva El-Rei! Viva a Constituição!
”. Para surpresa geral, em vez de mandar prendê-lo, o coronel repetiu o brado
do alferes e foi seguido pela tropa. Era parte da conjuração arquitetada nas
reuniões secretas. O estudante Patroni e o alferes Simões da Cunha eram os
profetas da boa-nova que nos meses seguintes haveria de se espalhar pelo Brasil
e resultar na Independência.
Em fevereiro de 1821 foi a vez da Bahia aderir à causa
constitucional após uma rápida troca de tiros entre tropas leias ao governador
e oficiais rebeldes. A cabeça do império – o Rio de Janeiro – caiu duas semanas
depois. Pressionado pelos revoltosos, um assustado D. João VI apareceu no dia
26 de fevereiro na janela do Paço Imperial e balbuciou as palavras com as quais
jurou as bases da futura constituição a serem elaboradas pelas cortes. Pela
primeira vez em sete séculos de monarquia portuguesa, um soberano aceitava
abrir mão de parte de sua autoridade em favor de um congresso que, convocado a
sua revelia, iria delimitar dali para frente os seus poderes. Com quase ½
século de atraso, Brasil e Portugal eram finalmente capturados pelos ventos
soprados nos EUA em 1776 e na França, em 1789.
D. João também acatou as ordens de embarcar de volta
para Lisboa, deixando o filho D. Pedro como príncipe regente do Brasil. Diante
de tantas novidades o clima era de euforia e, aparentemente, brasileiros e
portugueses lutavam pela mesma causa. No entanto, aos poucos as divergências
iam ficando mais claras, pois as cortes se revelariam liberais em relação aos
seus próprios interesses em Portugal, mas reacionárias naquilo que dizia
respeito ao Brasil.
As cortes eram uma assembleia na qual os reis e a
nobreza de Portugal pactuavam as suas relações e, desde a criação do reino no
século 12, eram convocadas sempre que houvesse dúvidas sobre os limites e
legitimidade do poder dos reis.
Nessas assembleias o soberano ouvia a grande nobreza
da terra, os chefes militares e a alta hierarquia da Igreja sobre a aplicação
das leis e o papel que as próprias cortes desempenhariam à frente do governo.
Foram caindo em desuso à medida que o poder do rei foi se fortalecendo e, em
1820, já fazia 120 anos que as cortes não eram convocadas. A assembleia
convocada em 1820, além de quebrar o jejum dessas reuniões no século anterior,
tinha uma diferença em relação as que haviam precedido. Eram cortes liberais,
muito influenciadas pelas noções da Revolução Francesa, que defendia o fim do
poder dos reis. Caberia a essas cortes a tarefa de construir um novo sistema
político, o de monarquia constitucional – até então nunca tentado em Portugal.
A composição das cortes de 1820 também se diferenciava
das demais. Em lugar da grande nobreza da terra e da alta hierarquia militar e
eclesiástica, era integrada por padres, professores, advogados e comerciantes –
representantes de uma nova elite política e intelectual que havia emergido no
país durante a permanência da família real no Rio de Janeiro. É curiosa a alta
proporção de padres na delegação brasileira – 30% dos deputados – prova de que
a Igreja se constituía num dos pilares da revolução em andamento na colônia.
Fazendeiros, advogados e médicos compunham os outros 30%. Os magistrados, 20%;
os militares, 10%, cabendo aos funcionários públicos e professores os 10%
restantes.
Somente a representação de São Paulo levou instruções
à constituinte portuguesa. Elaborado por José Bonifácio, o documento defendia a
“integridade e a indivisibilidade do Reino Unido” e igualdade de direitos entre
brasileiros e portugueses. No Brasil haveria um governo centralizado ao qual se
submeteriam todas as províncias. Ao desembarcarem em Lisboa (no final de 1821),
os deputados brasileiros foram surpreendidos por diversas decisões tomadas na
sua ausência, pois todos os projetos tinham o objetivo de recolonizar o Brasil
cassando todos os privilégios concedidos por D. João VI nos anos anteriores. Ao
agir assim, os representantes portugueses haviam quebrado a promessa de não
tocar em assuntos de interesse do Brasil, antes da chegada de seus
representantes.
Em um esforço de fragmentar o território brasileiro
como forma de controla-lo mais facilmente, as cortes decidiram dividir o Brasil
em províncias autônomas e, cada uma delas, elegeria sua própria junta
provisória de governo que responderia a Lisboa, sem dar satisfações ao
príncipe. No Rio de Janeiro, D. Pedro se sentia cada vez mais isolado: _
“Fiquei regente, e hoje sou capitão-general, porque governo só a província”. As
medidas mais drásticas saíram em setembro, anulando os tribunais de justiça e
outras instituições criadas por D. João no Rio de Janeiro. Elas restabeleciam o
antigo sistema de monopólio comercial português sobre produtos comprados (ou
vendidos) pelos brasileiros e, por fim, determinavam que o príncipe regente
retornasse a Lisboa e dali passasse a viajar incógnito pela Espanha, França e
Inglaterra “a fim de instruir-se”.
Para assegurar que suas resoluções fossem cumpridas,
as cortes nomearam “governadores das armas” para cada província, os quais
seriam encarregados de preservar a ordem e sufocar quaisquer tentativas de
autonomia. O tom dos discursos entre os deputados portugueses era incendiário
e, ao pedir mais tropas para a Bahia, José Joaquim Ferreira de Moura afirmou
que a população brasileira era “composta de negros, mulatos, crioulos e
europeus de diferentes caracteres; ou seja, gente de segunda classe, a ser
tratada a pau e chicote”.
Dois meses depois, Xavier Monteiro chamava D. Pedro de
“um mancebo vazio de experiência, arrebatado pelo amor da novidade e por um
insaciável desejo de figurar, vacilante em princípio, incoerente em ação,
contraditório em palavras”. Nessa época, as comunicações entre Brasil e
Portugal eram muito lentas, pois uma viagem entre Salvador e Lisboa demorava 65
dias e, do Rio de Janeiro, demorava cerca de 70 dias. Por isso, é natural que
os deputados brasileiros em Lisboa demorassem meses a tomar posse e, uma vez
instalados em Lisboa, tivessem dificuldades em saber das novidades no Brasil.
O mesmo acontecia com as decisões das cortes que
afetavam os interesses brasileiros e, por essa razão, só em dezembro de 1821 o
navio Infante Dom Sebastião atracou no Rio de Janeiro com as notícias de que as
repartições governamentais no Brasil seriam fechadas e que D. Pedro deveria
embarcar para Lisboa. A reação dos brasileiros foi de revolta. Manifestos e
abaixo-assinados contra as cortes e pedindo a permanência de D. Pedro no Brasil
começaram a ser organizados em São Paulo, Minas Gerais e na própria capital.
Aí, o centro da conspiração era uma cela no Convento de S. Antônio, no Largo da
Carioca.
Seu ocupante – o frei Francisco Sampaio – era ligado à
maçonaria e foi o autor da representação que seria entregue ao príncipe pedindo
que ficasse no Brasil. O abaixo-assinado tinha 8 mil assinaturas – número
espantoso para uma cidade de apenas 120 mil habitantes. A data escolhida, 9 de
janeiro de 1822, passaria para a História como o “Dia do Fico”. Ao receber o
documento das mãos do presidente do Senado da Câmara, D. Pedro anunciou a
decisão de permanecer no Brasil, contrariando as ordens da corte.
Os brasileiros mal tiveram tempo de comemorar o
“Fico”, pois na tentativa de forçar o príncipe a recuar e obedecer às ordens
das cortes, o general Jorge de Avilez de Souza Tavares, comandante da principal
guarnição militar portuguesa no Rio de Janeiro, ocupou o Morro do Castelo que
dominava a área da zona portuária da cidade. O tenente-coronel português, José
Maria da Costa lançou um desafio: “Havemos de levá-lo pelas orelhas. A tropa
vai cerca-lo e prendê-lo”.
A cidade amanheceu em clima de guerra, com brasileiros
e portugueses prontos para a batalha. No lado brasileiro, concentradas no Campo
de Santana havia 10 mil pessoas armadas, incluindo soldados, “ armados de
pistolas, facas e pedaços de pau, negros carregando capim e milho para animais
da tropa ou levando à cabeça tabuleiros de doces e refrescos para os homens” –
na descrição da viajante Maria Graham. Os portugueses eram em menor número
(2000 soldados), porém mais bem treinados e organizados. No dia 12, os ânimos
se acalmaram com a notícia de que o general Avilez se dispunha a retirar seus
homens para Niterói.
Em 5 de março um novo esquadrão português apareceu na
entrada da Baía de Guanabara, trazendo 1.200 soldados destinados a substituir
as forças do general Avilez e, uma vez mais, D. Pedro se manteve inflexível. Os
navios entraram na baía, mas tiveram de ficar ao largo sob a pontaria dos
canhões das fortalezas cariocas e com suas tropas impedidas de desembarcar. Os
oficiais só puderam ir a terra depois de jurar obediência ao príncipe regente.
O primeiro grande enfrentamento entre portugueses e
brasileiros resultou numa tragédia familiar que abalou o ânimo de D. Pedro.
Assustado com os rumores sobre um plano para sequestra-lo, o príncipe decidiu
proteger sua família enviando a princesa Leopoldina e os filhos pequenos para a
Real fazenda de Santa Cruz.
Foi uma viagem desconfortável, por estradas
esburacadas e sob calor sufocante do verão carioca. Grávida de 8 meses,
Leopoldina levava nos braços o filho mais velho – João Carlos – de apenas 9
meses. Frágil e doente, morreu em 4 de fevereiro, depois de 28 horas seguidas
de convulsões. A partir disso as relações azedaram de vez e, em Lisboa, os
deputados brasileiros eram alvos de zombarias nas ruas e vaiados nos recintos
das cortes. E, com a expulsão do general Avilez e a proibição de desembarque
das tropas de reforço enviadas por Lisboa, o Rio de Janeiro (e parte das
regiões sul e sudeste) estavam livres de qualquer pressão militar.
Uma semana após o “Dia do Fico”, D. Pedro organizou
seu primeiro governo no Brasil. Era liderado pelo paulista José Bonifácio, o
homem cujos conselhos seriam decisivos nas ações do príncipe no caminho para a
Independência. Bonifácio agiu rápido e, com uma série de decretos, restaurou a
administração das diversas províncias a partir do Rio de Janeiro.
Anunciou que a execução de qualquer ordem das cortes
seria ilegal sem o prévio consentimento do príncipe regente e, por fim,
convocou um “Conselho de Procuradores das Províncias” – encarregadas de
elaborar as primeiras leis do Brasil independente.
Em maio, D. Pedro aceitou o título de “defensor
perpétuo e protetor do Brasil”, que lhe foi oferecido por iniciativa da
maçonaria. Na primeira semana de agosto ele lançou um manifesto, redigido pelo
maçom Gonçalves Ledo, o qual dizia que “estava acabado o tempo de enganar os
homens”. Daí as cortes responderam no mesmo tom, proibindo o embarque de armas
e reforços para as províncias obedientes ao Rio de Janeiro e determinaram que
D. Pedro dissolvesse o novo governo, cancelando a convocação da constituinte e
prendesse os ministros contrários às decisões de Lisboa.
Em discursos contra os “rebeldes” brasileiros, o
deputado Borges Carneiro ameaçou: _ “Mostre-se que ainda temos um cão de fila,
ou leão, tal que, se soltarmos, há de trazê-los a obedecer às cortes, ao rei e
às autoridades constituídas”. Foram essas as ordens insolentes que D. Pedro
recebeu das mãos do esbaforido mensageiro Paulo Bregaro ao cair da tarde de 7
de setembro de 1822, às margens do riacho Ipiranga.
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