sábado, 24 de setembro de 2022

A Disputa Entre as Cortes Portuguesas e Brasileiras

 

Que Fatos Precipitaram a Ruptura Entre Portugueses e Brasileiros, em Setembro de 1820? Quais Foram as Consequências Para o Brasil da Revolução Liberal do Porto? Por Que D. João VI Aceitou Abrir Mão da Sua Autoridade em Favor de um Congresso?

 


Até as vésperas do Grito do Ipiranga, eram raras as vozes entre os brasileiros que apoiavam a separação completa entre Brasil e Portugal. A maioria das pessoas defendia a manutenção do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, na forma criada por D. João em 1815. Esse era o tom das proclamações do Príncipe Regente, dos discursos dos deputados brasileiros em Lisboa e também a linha dos editoriais do jornalista do Correio Braziliense, o principal formador de opinião da imprensa brasileira.

Foram o radicalismo e a falta de sensibilidade política das cortes portuguesas (pomposamente intituladas de Congresso Soberano) que precipitaram a ruptura. Convocadas em setembro de 1820, as cortes só começaram a se reunir em Lisboa em janeiro do ano seguinte. Antes foi necessário proceder às eleições dos deputados, que viriam de todos os confins do império português. O número de representantes seria proporcional à população de cada região, mas os escravos estavam excluídos.

Embora contasse 4,5 milhões de habitantes, o Brasil teve direito a ocupar somente 72 das 181 cadeiras, cabendo a Portugal 100 deputados. As demais províncias – Angola, Moçambique e os arquipélagos da Madeira e dos Açores – ficaram com as nove cadeiras restantes. Mesmo assim, somente 46 brasileiros tomaram posse em Lisboa. Os demais permaneceram no Brasil por dificuldades de locação ou divergências dentro da delegação.

Caso tivesse prevalecido a proposta brasileira, o império lusitano se converteria numa entidade semelhante ao da “British Commonwealth”, a comunidade dos países que compunham o Império Britânico e que concordaram em manter a rainha da Inglaterra como símbolo, mesmo depois de conquistar a autonomia – caso da Austrália, Nova Zelândia e Canadá. O Brasil tinha interesse na manutenção do Reino Unido por razões econômicas e, antes mesmo da fuga da família real para o Rio de Janeiro, a colônia já havia se tornado a mais rica e influente porção dos domínios portugueses.

As notícias da Revolução Liberal do Porto ocorrida em agosto de 1820, tinham sido recebidas com entusiasmo no Brasil e se alastraram rapidamente no país. O Pará foi a primeira província a aderir à causa constitucional e a novidade chegou a Belém no navio Amazonas em dezembro de 1820. O portador era o estudante de Direito Alberto Patroni Martins Maciel Parente, da Universidade de Coimbra. Ele trazia na bagagem uma tipografia que daria origem ao primeiro jornal editado no Pará – “O Paraense” – lançado cinco meses mais tarde.

As semanas seguintes foram de grande agitação em Belém, cidade de doze mil e quinhentos habitantes, dos quais cinco mil e oitocentos eram escravos. Uma conspiração liderada por Patroni explodiu em 1º de janeiro de 1821, durante a parada militar celebrada no Ano-Novo, no centro da cidade. O alferes de milícias Domingos Simões Cunha se adiantou de seu lugar e, diante do coronel João Pereira Vilaça, comandante do 1º Regimento de Infantaria, disparou três “vivas”. Nos dois primeiros não havia novidades, mas o terceiro mudava tudo:

_ “Viva a Religião Católica” Viva El-Rei! Viva a Constituição! ”. Para surpresa geral, em vez de mandar prendê-lo, o coronel repetiu o brado do alferes e foi seguido pela tropa. Era parte da conjuração arquitetada nas reuniões secretas. O estudante Patroni e o alferes Simões da Cunha eram os profetas da boa-nova que nos meses seguintes haveria de se espalhar pelo Brasil e resultar na Independência.

Em fevereiro de 1821 foi a vez da Bahia aderir à causa constitucional após uma rápida troca de tiros entre tropas leias ao governador e oficiais rebeldes. A cabeça do império – o Rio de Janeiro – caiu duas semanas depois. Pressionado pelos revoltosos, um assustado D. João VI apareceu no dia 26 de fevereiro na janela do Paço Imperial e balbuciou as palavras com as quais jurou as bases da futura constituição a serem elaboradas pelas cortes. Pela primeira vez em sete séculos de monarquia portuguesa, um soberano aceitava abrir mão de parte de sua autoridade em favor de um congresso que, convocado a sua revelia, iria delimitar dali para frente os seus poderes. Com quase ½ século de atraso, Brasil e Portugal eram finalmente capturados pelos ventos soprados nos EUA em 1776 e na França, em 1789.

D. João também acatou as ordens de embarcar de volta para Lisboa, deixando o filho D. Pedro como príncipe regente do Brasil. Diante de tantas novidades o clima era de euforia e, aparentemente, brasileiros e portugueses lutavam pela mesma causa. No entanto, aos poucos as divergências iam ficando mais claras, pois as cortes se revelariam liberais em relação aos seus próprios interesses em Portugal, mas reacionárias naquilo que dizia respeito ao Brasil.

As cortes eram uma assembleia na qual os reis e a nobreza de Portugal pactuavam as suas relações e, desde a criação do reino no século 12, eram convocadas sempre que houvesse dúvidas sobre os limites e legitimidade do poder dos reis.

Nessas assembleias o soberano ouvia a grande nobreza da terra, os chefes militares e a alta hierarquia da Igreja sobre a aplicação das leis e o papel que as próprias cortes desempenhariam à frente do governo. Foram caindo em desuso à medida que o poder do rei foi se fortalecendo e, em 1820, já fazia 120 anos que as cortes não eram convocadas. A assembleia convocada em 1820, além de quebrar o jejum dessas reuniões no século anterior, tinha uma diferença em relação as que haviam precedido. Eram cortes liberais, muito influenciadas pelas noções da Revolução Francesa, que defendia o fim do poder dos reis. Caberia a essas cortes a tarefa de construir um novo sistema político, o de monarquia constitucional – até então nunca tentado em Portugal.

A composição das cortes de 1820 também se diferenciava das demais. Em lugar da grande nobreza da terra e da alta hierarquia militar e eclesiástica, era integrada por padres, professores, advogados e comerciantes – representantes de uma nova elite política e intelectual que havia emergido no país durante a permanência da família real no Rio de Janeiro. É curiosa a alta proporção de padres na delegação brasileira – 30% dos deputados – prova de que a Igreja se constituía num dos pilares da revolução em andamento na colônia. Fazendeiros, advogados e médicos compunham os outros 30%. Os magistrados, 20%; os militares, 10%, cabendo aos funcionários públicos e professores os 10% restantes.

Somente a representação de São Paulo levou instruções à constituinte portuguesa. Elaborado por José Bonifácio, o documento defendia a “integridade e a indivisibilidade do Reino Unido” e igualdade de direitos entre brasileiros e portugueses. No Brasil haveria um governo centralizado ao qual se submeteriam todas as províncias. Ao desembarcarem em Lisboa (no final de 1821), os deputados brasileiros foram surpreendidos por diversas decisões tomadas na sua ausência, pois todos os projetos tinham o objetivo de recolonizar o Brasil cassando todos os privilégios concedidos por D. João VI nos anos anteriores. Ao agir assim, os representantes portugueses haviam quebrado a promessa de não tocar em assuntos de interesse do Brasil, antes da chegada de seus representantes.

Em um esforço de fragmentar o território brasileiro como forma de controla-lo mais facilmente, as cortes decidiram dividir o Brasil em províncias autônomas e, cada uma delas, elegeria sua própria junta provisória de governo que responderia a Lisboa, sem dar satisfações ao príncipe. No Rio de Janeiro, D. Pedro se sentia cada vez mais isolado: _ “Fiquei regente, e hoje sou capitão-general, porque governo só a província”. As medidas mais drásticas saíram em setembro, anulando os tribunais de justiça e outras instituições criadas por D. João no Rio de Janeiro. Elas restabeleciam o antigo sistema de monopólio comercial português sobre produtos comprados (ou vendidos) pelos brasileiros e, por fim, determinavam que o príncipe regente retornasse a Lisboa e dali passasse a viajar incógnito pela Espanha, França e Inglaterra “a fim de instruir-se”.

Para assegurar que suas resoluções fossem cumpridas, as cortes nomearam “governadores das armas” para cada província, os quais seriam encarregados de preservar a ordem e sufocar quaisquer tentativas de autonomia. O tom dos discursos entre os deputados portugueses era incendiário e, ao pedir mais tropas para a Bahia, José Joaquim Ferreira de Moura afirmou que a população brasileira era “composta de negros, mulatos, crioulos e europeus de diferentes caracteres; ou seja, gente de segunda classe, a ser tratada a pau e chicote”.

Dois meses depois, Xavier Monteiro chamava D. Pedro de “um mancebo vazio de experiência, arrebatado pelo amor da novidade e por um insaciável desejo de figurar, vacilante em princípio, incoerente em ação, contraditório em palavras”. Nessa época, as comunicações entre Brasil e Portugal eram muito lentas, pois uma viagem entre Salvador e Lisboa demorava 65 dias e, do Rio de Janeiro, demorava cerca de 70 dias. Por isso, é natural que os deputados brasileiros em Lisboa demorassem meses a tomar posse e, uma vez instalados em Lisboa, tivessem dificuldades em saber das novidades no Brasil.

O mesmo acontecia com as decisões das cortes que afetavam os interesses brasileiros e, por essa razão, só em dezembro de 1821 o navio Infante Dom Sebastião atracou no Rio de Janeiro com as notícias de que as repartições governamentais no Brasil seriam fechadas e que D. Pedro deveria embarcar para Lisboa. A reação dos brasileiros foi de revolta. Manifestos e abaixo-assinados contra as cortes e pedindo a permanência de D. Pedro no Brasil começaram a ser organizados em São Paulo, Minas Gerais e na própria capital. Aí, o centro da conspiração era uma cela no Convento de S. Antônio, no Largo da Carioca.

Seu ocupante – o frei Francisco Sampaio – era ligado à maçonaria e foi o autor da representação que seria entregue ao príncipe pedindo que ficasse no Brasil. O abaixo-assinado tinha 8 mil assinaturas – número espantoso para uma cidade de apenas 120 mil habitantes. A data escolhida, 9 de janeiro de 1822, passaria para a História como o “Dia do Fico”. Ao receber o documento das mãos do presidente do Senado da Câmara, D. Pedro anunciou a decisão de permanecer no Brasil, contrariando as ordens da corte.

Os brasileiros mal tiveram tempo de comemorar o “Fico”, pois na tentativa de forçar o príncipe a recuar e obedecer às ordens das cortes, o general Jorge de Avilez de Souza Tavares, comandante da principal guarnição militar portuguesa no Rio de Janeiro, ocupou o Morro do Castelo que dominava a área da zona portuária da cidade. O tenente-coronel português, José Maria da Costa lançou um desafio: “Havemos de levá-lo pelas orelhas. A tropa vai cerca-lo e prendê-lo”.

A cidade amanheceu em clima de guerra, com brasileiros e portugueses prontos para a batalha. No lado brasileiro, concentradas no Campo de Santana havia 10 mil pessoas armadas, incluindo soldados, “ armados de pistolas, facas e pedaços de pau, negros carregando capim e milho para animais da tropa ou levando à cabeça tabuleiros de doces e refrescos para os homens” – na descrição da viajante Maria Graham. Os portugueses eram em menor número (2000 soldados), porém mais bem treinados e organizados. No dia 12, os ânimos se acalmaram com a notícia de que o general Avilez se dispunha a retirar seus homens para Niterói.

Em 5 de março um novo esquadrão português apareceu na entrada da Baía de Guanabara, trazendo 1.200 soldados destinados a substituir as forças do general Avilez e, uma vez mais, D. Pedro se manteve inflexível. Os navios entraram na baía, mas tiveram de ficar ao largo sob a pontaria dos canhões das fortalezas cariocas e com suas tropas impedidas de desembarcar. Os oficiais só puderam ir a terra depois de jurar obediência ao príncipe regente.

O primeiro grande enfrentamento entre portugueses e brasileiros resultou numa tragédia familiar que abalou o ânimo de D. Pedro. Assustado com os rumores sobre um plano para sequestra-lo, o príncipe decidiu proteger sua família enviando a princesa Leopoldina e os filhos pequenos para a Real fazenda de Santa Cruz.

Foi uma viagem desconfortável, por estradas esburacadas e sob calor sufocante do verão carioca. Grávida de 8 meses, Leopoldina levava nos braços o filho mais velho – João Carlos – de apenas 9 meses. Frágil e doente, morreu em 4 de fevereiro, depois de 28 horas seguidas de convulsões. A partir disso as relações azedaram de vez e, em Lisboa, os deputados brasileiros eram alvos de zombarias nas ruas e vaiados nos recintos das cortes. E, com a expulsão do general Avilez e a proibição de desembarque das tropas de reforço enviadas por Lisboa, o Rio de Janeiro (e parte das regiões sul e sudeste) estavam livres de qualquer pressão militar.

Uma semana após o “Dia do Fico”, D. Pedro organizou seu primeiro governo no Brasil. Era liderado pelo paulista José Bonifácio, o homem cujos conselhos seriam decisivos nas ações do príncipe no caminho para a Independência. Bonifácio agiu rápido e, com uma série de decretos, restaurou a administração das diversas províncias a partir do Rio de Janeiro.

Anunciou que a execução de qualquer ordem das cortes seria ilegal sem o prévio consentimento do príncipe regente e, por fim, convocou um “Conselho de Procuradores das Províncias” – encarregadas de elaborar as primeiras leis do Brasil independente.

Em maio, D. Pedro aceitou o título de “defensor perpétuo e protetor do Brasil”, que lhe foi oferecido por iniciativa da maçonaria. Na primeira semana de agosto ele lançou um manifesto, redigido pelo maçom Gonçalves Ledo, o qual dizia que “estava acabado o tempo de enganar os homens”. Daí as cortes responderam no mesmo tom, proibindo o embarque de armas e reforços para as províncias obedientes ao Rio de Janeiro e determinaram que D. Pedro dissolvesse o novo governo, cancelando a convocação da constituinte e prendesse os ministros contrários às decisões de Lisboa.

Em discursos contra os “rebeldes” brasileiros, o deputado Borges Carneiro ameaçou: _ “Mostre-se que ainda temos um cão de fila, ou leão, tal que, se soltarmos, há de trazê-los a obedecer às cortes, ao rei e às autoridades constituídas”. Foram essas as ordens insolentes que D. Pedro recebeu das mãos do esbaforido mensageiro Paulo Bregaro ao cair da tarde de 7 de setembro de 1822, às margens do riacho Ipiranga.

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