quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Paixão e Morte na Revolução Federalista Brasileira

 

Onde Ocorreu a Chamada Revolução Federalista? O Que Defendiam os Maragatos e os Pica-Paus? Por Que em 1893 o Rio Grande do Sul Era o Ponto Nevrálgico da República? Qual Era a Importância de Júlio de Castilhos e Silveira Martins Nesse Movimento?




No final de novembro de 1893, uma notícia publicada pelo jornal argentino “La Prensa” chamou a atenção do escritor americano Ambrose Bierce, correspondente em Buenos Aires do jornal Tribune de Nova York.

O artigo dizia que na semana anterior 700 pessoas haviam sido degoladas depois de um confronto em Rio Negro – vinte quilômetros distante de Bagé (RS). Alarmado, Bierce arrumou as malas e seguiu para lá e, ao chagar, deparou-se com uma cena de horror.

Na porteira de uma fazenda havia muita lama ressequida empapada de sangue humano, a lagoa vizinha exalava um insuportável odor de carniça e, mais adiante, bandos de urubus sobrevoavam o local. Ao entrevistar as pessoas Bierce não conseguiu apurar o número exato de mortos, mas falava-se em centenas.

Ele apurou que a matança começou ao meio-dia e prosseguiu por toda a noite, até a manhã seguinte. Trancafiadas no curral as vítimas eram chamadas uma a uma até a porteira do curral e, ao chegarem ali, recebiam um golpe de facão na garganta, à maneira como se costumava sangrar animais no matadouro.

O ritual de sangue testemunhado pelo jornalista ocorreu durante a chamada Revolução Federalista de 1893 no Rio Grande do Sul, na qual se estima que 12 mil pessoas perderam a vida. De um lado estavam os republicanos fiéis ao Presidente Floriano Peixoto e ao Governador Júlio de Castilhos.

De outro lado, os rebeldes federalistas (os maragatos), sob a chefia de Gaspar Silveira Martins – recém-retornado do exílio – e o comando militar do caudilho uruguaio Gumercindo Saraiva. Mestiços europeus, índios e negros, os maragatos eram um povo rústico que lutava por comida e pela possibilidade de saquear as regiões ocupadas. Eles combatiam a cavalo e eram hábeis no uso da lança, espada e facão.

Foram eles os responsáveis pela matança descrita na reportagem de Bierce e, semanas mais tarde, os legalistas de Floriano Peixoto e Júlio de Castilhos (os pica-paus) se vingaram, promovendo outra degola na localidade de Palmeira das Missões, onde foram mortos de forma semelhante 370 maragatos.

As degolas da Revolução Federalista são um exemplo do clima de ódio que se instalou no Brasil nos anos seguintes à Proclamação, em especial no período entre a ascensão de Floriano Peixoto e a posse de Campos Salles, sete anos mais tarde. Massacres, fuzilamentos, prisões e exílios forçados foram o preço que o novo regime pagou pela própria consolidação.

São episódios que os livros de história do Brasil não descrevem em toda sua crueldade e, em um deles, ocorrido em abril de 1894, o Coronel Moreira César – florianista e positivista fanático – promoveu um banho de sangue na cidade de Desterro (SC), ao fuzilar 185 revoltosos.




O país só tomou conhecimento disso depois da posse de Prudente de Moraes – primeiro Presidente civil – em novembro daquele ano. E, para humilhação dos catarinenses, a capital seria rebatizada com o nome de Florianópolis, em homenagem ao patrocinador da carnificina.

Em 1893, o Rio Grande do Sul era o ponto nevrálgico da República, uma região de paixões políticas exaltadas ao extremo. Durante todo o século XIX, os gaúchos tinham vivido sob permanente estado de conflagração e, na Revolução Farroupilha, estima-se que 3.400 pessoas tenham morrido. Nos anos que antecederam a Proclamação, o Rio Grande do Sul funcionou como um laboratório para as novas ideias que iriam transformar a história brasileira. Ali estavam os mais importantes teóricos do futuro regime.

Cada um desses teóricos tinha sua própria concepção sobre a República ideal, pois Assis Brasil – por exemplo – era um liberal, Pinheiro Machado, um conservador e, Júlio de Castilhos, um positivista e autoritário.

Porém, eles tinham um adversário em comum – o pecuarista Gaspar Silveira Martins, monarquista, líder do Partido Liberal, Conselheiro do Império e conhecido como “o Rei do Gado”. O confronto dessas ideias no momento de implantar o novo regime jogou o Rio Grande do Sul em um turbilhão político.

Chefe dos republicanos históricos, Júlio de Castilhos nasceu em 1860, cresceu em uma estância do interior gaúcho e, aos 17 anos, matriculou-se na Faculdade de Direito de São Paulo, onde se encantou com a doutrina positivista de Auguste Comte. Castilhos era gago, tinha de fazer um esforço penoso para articular as palavras e, na escola, sua gaguez era tanta que não conseguia responder às provas orais.

Mas, quando discursava do alto da tribuna, sua gaguez desaparecia e o transformava em um fluente orador. Depois de formar-se em São Paulo, ele retornou ao Rio Grande do Sul e associou-se à Venâncio Aires na propaganda republicana à frente do jornal “A Federação”, de onde voltou suas baterias contra o Império, contra a escravidão e contra Silveira Martins.

Alto, corpulento, de barriga roliça e barba branca, Silveira Martins era também um orador inflamado cujos discursos magnetizava as plateias. Nos anos finais da Monarquia ganhou fama de antiabolicionista ao declarar que amava mais a sua pátria do que os negros.

Ele costumava se referir ao adversário – Castilhos – de forma maldosa como “o gaguinho de A Federação”. Silveira Martins foi o homem que na noite de 15 de novembro de 1889, o Imperador Pedro II buscou para nomear para a chefia do Ministério, em uma última e desastrada tentativa de salvar a Monarquia. Preso em Florianópolis, naquele mesmo dia foi exilado na Europa, de onde voltaria em 1892. Nesse ínterim, a política do Rio Grande do Sul foi entregue ao grupo comandado por Júlio de Castilho.

Deputado à Assembleia Constituinte de 1890, Júlio de Castilhos se destacou como campeão da corrente federalista e positivista, acreditando que, para se consolidar, a República precisava antes passar por uma fase ditatorial. Na Constituinte essas ideias não vingaram, mas ele as transformou em lei, a ferro e fogo, na redação da nova Constituição estadual gaúcha meses mais tarde.

Ela previa que as leis não seriam elaboradas pelo Parlamento, mas pelo Chefe do Poder Executivo; o Vice-Governador (ou Vice-Presidente do Estado, como se dizia na época), em vez de eleito nas urnas, seria escolhido pelo titular e, por fim, o Governador poderia ser reeleito tantas vezes quantas estivesse disposto a concorrer. A soma de todos esses poderes transformava o novo Governador gaúcho em um ditador na prática.

A Constituição positivista de Júlio de Castilhos e sua rivalidade com Silveira Martins, somadas às dificuldades da República brasileira, serviram de base para a sangrenta Revolução Federalista que por 2 anos dilacerou o Rio Grande do Sul. Castilhos foi eleito Governador em julho de 1891, mesmo mês em que a sua Constituição pessoal era promulgada pela Assembleia Estadual. Em novembro, apoiou o golpe de Deodoro que fechou o Congresso, acabou deposto em uma rebelião e substituído por uma junta de governo.

Envenenada pelas próprias rivalidades, a junta de governo durou pouco tempo, passando o governo ao General Barreto Leite. Dias depois, Castilhos e seus aliados arrombaram as portas de um edifício público e ali instalaram um governo paralelo. Assustado, o General Barreto Leite refugiou-se a bordo da canhoneira Marajó.

Em nova eleição, dessa vez sem concorrentes, Castilhos foi eleito Governador novamente e tomou posse em janeiro de 1893. Duas semanas depois, o caudilho Gumercindo Saraiva deixou seu refúgio no Uruguai e, à frente de 500 homens, invadiu o Rio Grande do Sul.

Um segundo grupo, comandado pelo General João Nunes da Silva Tavares (o Joca Tavares), ocupou outra região com 3 mil homens e, acuado, o Governador convenceu Floriano Peixoto de o levante federalista não era apenas uma guerra de gaúchos, mas uma tentativa de restauração da Monarquia chefiada por Silveira Martins. Tratava-se, portanto, de um ataque à própria República. A parir daí os destinos de Floriano e Castilhos estariam definitivamente interligados.

Um novo fato ocorrido no Rio deu dimensões nacionais à luta que, até então, era restrita ao Sul. Foi a Segunda Revolta da Armada, deflagrada em 6 de setembro pelo Almirante Custódio José de Mello. A primeira revolta, também liderada por Custódio tinha forçado a renúncia de Deodoro e, dessa vez, protegido a bordo do encouraçado Aquidabã, o Almirante declarou-se em guerra contra Floriano determinando que os navios de guerra ancorados no Rio apontassem seus canhões para a cidade.

Ao mesmo tempo, dois cruzadores de guerra tomaram Desterro (antiga capital de Santa Catarina) e, em Buenos Aires, o Almirante Eduardo Wandenkolk – que tinha sido o 1º Ministro da Marinha na República – tomou de assalto o navio Júpiter, carregado de armas e desviando-o para o Rio Grande do Sul. Em dezembro, o Almirante Saldanha da Gama aderiu à revolta divulgando um manifesto no qual deixava claro seu desejo de restaurar a Monarquia.

Floriano Peixoto aproveitou a oportunidade e usou habilmente o temor da restauração para esmagar os adversários e, pressionado, o Congresso concedeu-lhe autorização para decretar o estado de sítio. Partidários do Marechal organizaram batalhões patrióticos – milícias compostas de voluntários civis e militares – dispostos a defender a República brasileira.

Floriano venceu a Segunda Revolta da Armada pelo cansaço e, nos seis meses que durou o impasse, os navios rebelados se limitaram a disparar um único tiro, o qual atingiu a torre da Igreja da Candelária.

No Sul, Wandenkolk tentou em vão tomar a cidade do Rio Grande, sendo repelido pelas tropas federais. Um planejado encontro com as forças de Gumercindo Saraiva também fracassou, obrigando o Almirante a se render às forças de Floriano. No Rio de Janeiro, Custódio de Mello e seus oficiais se refugiaram nos navios portugueses.

Floriano deixou-os partir mediante a promessa de que só seriam desembarcados em Portugal. No entanto, os navios tomaram o rumo da Bacia da Prata, onde os rebeldes da Marinha se juntaram aos combatentes da Revolução Federalista. Indignado, Floriano Peixoto rompeu relações com Portugal.

Portugueses foram espancados nas ruas do Rio, suas lojas depredadas e incendiadas. Para evitar retaliações, alguns comerciantes mandaram afixar placas na fachada de suas lojas com os dizeres: “Somos Amigos do Brasil”.

Enquanto isso, Gumercindo Saraiva empreendia marcha de 2.500 quilômetros entre o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, quando travou 5 batalhas e 70 combates contra as tropas federais e os pica-paus de Júlio de Castilhos.

Os soldados legalistas estavam sob o comando do Coronel Antônio Ernesto Gomes Carneiro, veterano da Guerra do Paraguai que recebeu de Floriano Peixoto uma ordem incisiva: “Resistir até o último homem”. E foi isso que ele fez, até ser alvejado por tiros em fevereiro.

Essa heroica resistência deu a Floriano tempo suficiente para reorganizar suas forças e deter o avanço federalista. Após a morte de Gomes Carneiro, Gumercindo pôde avançar para o Norte, mas o tempo perdido no cerco à cidade paranaense anulou suas chances de sucesso. No dia 20 de fevereiro, acampou nos arredores de Curitiba, abandonada pelo Governador Vicente Machado.

Depois de Curitiba, Gumercindo Saraiva marchou para Ponta Grossa e a divisa com São Paulo de onde enviou um telegrama para Floriano Peixoto, intimando-o a renunciar sob a ameaça de levar suas tropas até o Rio de Janeiro.

Àquela altura a causa dos federalistas gaúchos já estava perdida e, para chegar ao Rio, Gumercindo teria de atravessar o Estado de São Paulo, cujos chefes republicanos estavam comprometidos com Floriano. Sem alternativa, Gumercindo empreendeu uma longa e penosa retirada de volta ao território gaúcho. Foi morto em 10 de agosto de 1894 por um franco-atirador.

Em 23 de agosto de 1895 um armistício colocou fim à Revolução Federalista e, um mês depois, todos os envolvidos foram anistiados pelo governo federal. Silveira Martins embarcou outra vez para o exílio e morreu em um hotel de Montevidéu no dia 23 de julho de 1901.

Já Castilhos, faleceu dois anos mais tarde de câncer na garganta. O poder que implantou ao domar os adversários da Revolução Federalista manteve-se incólume por várias décadas. Seu sucessor – Antônio Augusto Borges de Medeiros – um ex-colega da Faculdade de Direito de S. Paulo governou o Rio Grande do Sul por 25 anos. Na história republicana brasileira, nenhum Governador exerceu o cargo por tanto tempo.

  

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