sexta-feira, 5 de julho de 2024

Os Dois Brasis de Dom João VI

 Como Era o Brasil da Capital no Rio de Janeiro? Qual Era o Perfil da População do Norte e Nordeste Naquela Época? Quais Foram as Principais Mudanças Nos Treze Anos de Permanência da Corte Portuguesa no Rio de Janeiro?

 

 


 

Ao retornar a Lisboa em abril de 1821, D. João VI deixou para trás dois (2) Brasis diferentes. De um lado, existia um país transformado pela permanência da corte nos trópicos, um país bem informado das novidades que redesenhavam o mundo e às voltas com dilemas semelhantes aos conflitos que agitavam a opinião pública na Europa e nos Estados Unidos.

Era um Brasil muito pequeno, com alguns milhares de pessoas, cujo epicentro – o Rio de Janeiro – havia sido um modesto vilarejo colonial de 1807 convertido numa cidade com traços e refinamentos de capital europeia nos 13 anos seguintes.

E, de outro lado, um vasto território, isolado e ignorante, não muito diferente do lugar selvagem que Pedro Álvares Cabral havia encontrado 300 anos antes. Esses dois (2) Brasis conviviam de forma precária e se ignoravam mutuamente. Caberia então ao príncipe D. Pedro e ao seu braço direito – José Bonifácio – a tarefa de fazê-los caminhar junto à Independência.

O Brasil transformado tinha compositores, maestros, dançarinos, cantores, arquitetos, pintores, cientistas, professores, escolas de ensino superior, livros, jornais, fábricas de ferro, pólvora, tecidos, moinhos de farinha de trigo e lojas que vendiam as últimas novidades vindas de Londres ou Paris, além da novíssima tecnologia dos navios a vapor.

Era o Brasil que, no Rio de Janeiro, se exibia nos concertos do Teatro Real de São João, nas missas na Capela Real, nas cerimônias de beija-mão no Palácio da Quinta da Boa Vista e nos salões frequentados pelo corpo diplomático, pelos oficiais e comerciantes estrangeiros e pela nova corte criada por D. João. Era uma nobreza inflacionada pelo regime de “toma lá, dá cá” que se estabeleceu entre a riqueza colonial e a destituída corte portuguesa refugiada no Brasil depois da invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão.

O outro Brasil de D. João – pobre, descalço e atrasado – ainda caçava e escravizava índios arredios que atacavam fazendas no interior do país, viajava a pé, em canoas ou no lombo de mulas que atravessavam estradas esburacadas, vivia em choupanas de pau a pique, chão de terra batida e cobertura de palha, alimentava-se da pesca e de uma agricultura rudimentar, não sabia ler e escrever nem tinha acesso a qualquer informação sobre o que se passava alguns quilômetros além da sua comunidade.

Esses dois (2) Brasis tinham alguns traços em comum. Um era a aversão ao trabalho e a total dependência da mão de obra escrava. Outro traço em comum era a esperteza e a falta de transparência nas relações comerciais – o famoso “jeitinho” brasileiro – que já assustava os estrangeiros que aqui chegavam depois da abertura dos portos.

Em 1822, o Brasil tinha cerca de 4,5 milhões de habitantes, divididos em 800 mil índios, 1 milhão de brancos, 1,2 milhão de escravos e 1,5 milhão de mulatos, pardos, caboclos e mestiços. Resultado de 3 séculos de miscigenação racial, esta última parcela da população era um grupo semi-livre, o qual se espalhava pelas zonas interiores e vivia submisso às leis e vontades dos coronéis locais.

O mapa do Brasil tinha mais ou menos os mesmos contornos atuais, com duas exceções: _ a província Cisplatina, que ganharia sua independência como Uruguai em 1828 e o estado do Acre que, na época, fazia parte da Bolívia e seria comprado pelo Barão do Rio Branco e incorporado ao território brasileiro no começo do século XX.

Uma novidade foi a chegada dos suíços à Nova Friburgo (RJ) em 1818, dando início à imigração estrangeira no Brasil. Dos primeiros 2 mil imigrantes, 531 morreram de fome, doentes e maus-tratos, mas a colônia vingou e hoje é um destino turístico bem conhecido. Era parte de um antigo projeto de “branqueamento” da população, defendida por diferentes ministros da coroa.

Coube a uma das colonas suíças de Nova Friburgo – Maria Catarina Equey – a honra de amamentar o príncipe Pedro de Alcântara, futuro imperador Pedro II. A família imperial acreditava ser mais saudável empregar nessa tarefa uma mulher branca, europeia e católica do que as negras amas de leite tão comuns nas casas dos senhores de escravos.

Nenhum outro período da história brasileira testemunhou mudanças tão profundas quanto os 13 anos de permanência da corte portuguesa no Rio de Janeiro. A principal beneficiária da abertura dos portos – a Inglaterra da Revolução Industrial – inundaria o Brasil com seus produtos.





Eram tecidos de algodão, de linho e de lã, peças de vidro, botas e sapatos, armas de fogo e munições, barbantes, pregos e cordas, serrotes, martelos, pás, machados, utensílios de toda natureza que chagavam a preços acessíveis e praticamente sem concorrentes. Em 1822, metade dos 434 navios estrangeiros atracados no Rio de Janeiro era inglesa.

D. João mandou melhorar a comunicação entre as diversas regiões, estimular o povoamento e o aproveitamento das riquezas da colônia. A abertura de estradas ajudou a romper o isolamento e as áreas mais remotas foram exploradas e mapeadas.

A navegação fluvial foi estimulada e o primeiro navio a vapor – comprado à Inglaterra em 1818 – começou a navegar dois anos depois nas águas do Recôncavo Baiano. Convertido à capital do império colonial português, o Rio de Janeiro passou por transformações drásticas. A população, que em 1808 era de 60 mil habitantes, saltou para 110 mil em 1821.

A criação de uma escola de medicina em Salvador inaugurou o ensino superior no Brasil e, em seguida, vieram uma escola de técnicas agrícolas, um laboratório de estudos e análises químicas e a Academia Real Militar – que ensinava engenharia civil e mineração.

Uma nova estrutura do Estado se transferiu para o Brasil com a organização do Supremo Conselho Militar e de Justiça, da Real Casa de Suplicação (equivalente ao STF), do Erário Régio, do Banco do Brasil, do Conselho de fazenda e do Corpo da Guarda Real.

Uma mudança de impacto foi o surgimento da imprensa, pois ela mudou o ambiente intelectual e político do país e passou a disseminar e a debater as ideias políticas que chegavam da Europa e dos Estados Unidos.

A censura caiu em março de 1821 e, a partir daí, todo cidadão poderia manifestar suas opiniões sem censura prévia. Livres da censura, os jornais se transformaram no palco em que se travaram os principais debates durante a Independência.

A música era a arte preferida pela corte portuguesa no Rio de Janeiro. O pintor Jean-Baptiste Debret – que chegou ao Brasil em 1816 – estimou que D. João gastava 300 mil francos anuais, uma fortuna para a época, na manutenção da Capela Real.

Nos 13 anos de D. João nos trópicos, o Brasil é redescoberto pelos estrangeiros, autorizados pela 1ª vez a visitar a até então misteriosa colônia portuguesa. Missões artísticas, científicas e culturais esquadrinhavam seu território documentando paisagens, riquezas e tipos humanos.

O pintor Debret se tornaria um grande amigo de D. Pedro e, ao lado de Nicolas Taunay, deixou o registro mais precioso daquele momento de grande transformação na realidade brasileira.

As mudanças teriam seu ponto culminante em 16 de dezembro de 1815 e, nesse dia, véspera da comemoração de 81 anos da rainha Maria I, D. João promoveu o Brasil à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves, ficando o Rio de Janeiro como sede oficial da coroa.

Havia dois objetivos nessa medida. O primeiro era homenagear os brasileiros que o haviam acolhido em 1808 e, o outro objetivo, era reforçar o papel da monarquia portuguesa nas negociações do Congresso de Viena, no qual as potências vitoriosas na guerra contra Napoleão discutiam o futuro da Europa. Com a elevação do Brasil à categoria de Reino Unido, a corte portuguesa demonstrava ao mundo que não estava apenas refugiada nos trópicos e ganhava direito de voz e voto no congresso.

Enquanto o Brasil prosperava, sua antiga metrópole vivia uma crise sem precedentes, pois os 13 anos que D. João permaneceu no Rio de Janeiro foram de grandes sofrimentos para os portugueses. Entre 1807 e 1814 Portugal perdeu meio milhão de habitantes, 1/6 da população morreu de fome – ou nos campos de batalha – ou fugiu do país.

Nunca o país havia perdido um número tão grande de habitantes em tão pouco tempo. A abertura dos portos da antiga colônia e o tratado especial de comércio com os ingleses (em 1810) haviam sido golpes duríssimos para os comerciantes portugueses, que até então intermediavam todas as trocas do Brasil com a metrópole e o resto do mundo. Prejudicado pela concorrência britânica, o comércio de Portugal com o Brasil despencou.

Em Portugal, existia a esperança de que, terminada a guerra contra Napoleão, o tratado com a Inglaterra seria revogado e a corte retornaria a Lisboa. Não aconteceu nem uma coisa nem outra, pois o tratado continuou em vigor ainda por muito tempo e D. João não queria voltar. Os ressentimentos explodiram em agosto de 1820, quando tropas rebeladas se reuniram na cidade do Porto e se declararam contra o domínio inglês.

A revolta chegou a Lisboa, pedindo o fim do absolutismo monárquico e, no dia 27, foi constituída a Junta Provisória Preparatória das Cortes, a qual era encarregada de redigir uma nova Constituição liberal. Pela decisão dos revoltosos, a dinastia dos Bragança seria poupada, mas o retorno do rei a Portugal virava uma “questão de honra” e, em abril de 1821, D. João embarcou de volta para Lisboa.


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