Qual Foi o
Significado Dado à Cirurgia e à Anatomia Por Vesálio? Como Eram Feitas as
Dissecações de Cadáveres? Por Que Vesálio Discordava de Galeno?
Vesálio deu à cirurgia e à anatomia um novo
significado, pois ele jamais considerou seu dever principal ser o intérprete
dos textos de Galeno. Ao orientar a anatomia que lhe era exigida, não procedeu
conforme o costume e, ao contrário dos professores antes dele, Vesálio não
ficava sentado na sua cadeira professoral enquanto um cirurgião-barbeiro (de
mãos ensanguentadas) tirava os órgãos do cadáver. Ele próprio manipulava o corpo
e dissecava os órgãos. A fim de ajudar seus alunos, Galeno preparou alguns
auxiliares de ensino sob a forma de quatro cartas anatômicas pormenorizadas, a
fim de mostrar ao estudante a estrutura do corpo quando não havia nenhum
cadáver disponível. Cada parte estava rotulada com o seu nome técnico e o
simples uso dessas cartas já era uma grande novidade.
Durante a Idade Média os desenhos anatômicos tinham
sido raros e, no século XVI quando foram redescobertos, editados, traduzidos de
novo e impressos os textos de Galeno, continuaram a não lhes ser acrescentados
desenhos anatômicos. Se não houvesse impressoras, talvez Vesálio não se
sentisse tentado a publicar as cartas que elaborara para seus alunos. Mas,
quando uma delas foi plagiada Vesálio mandou publicar todas. Três eram desenhos
de um esqueleto, as outras três “tábuas” eram radicalmente originais desenhos
do próprio Vesálio das veias, artérias e sistema nervoso.
A novidade residia mais no modo como mostravam do que no que mostravam. E com essas tábuas Vesálio inventou o método gráfico em anatomia. Hoje parece surpreendente que um auxiliar de ensino tão óbvio tivesse alguma vez de ser inventado. Durante séculos, mesmo quando o treino de médicos nas escolas médicas da Europa incluíra algumas oportunidades de ver o interior do corpo humano, tinham sido poucas e muito espaçadas.
Durante as Cruzadas surgiu uma oportunidade macabra de
estudar o esqueleto humano, quando os corpos dos que tinham morrido durante a
viagem eram desmembrados e cozidos, para que seus ossos pudessem ser
convenientemente enviados para sepultamento em sua terra natal. Este costume
estava disseminado de tal forma que deu origem a uma bula do Papa Bonifácio
VIII, que proibiu tal prática. No século XIV, a dissecação humana se tornou
mais habitual em faculdades médicas e quando o Papa Alexandre V morreu, em
1410, foi efetuada uma autópsia no seu corpo. No entanto, os atos de dissecação
pareciam contrários à natureza e à vontade de Deus. “Anatomizar” também
significava fazer nascer uma criança por operação de cesariana. De vez em
quando, o tribunal ordenava uma autópsia a fim de estabelecer se os ferimentos
do falecido tinham sido a causa da morte. Quando a saúde da comunidade estava
em jogo, as autópsias podiam ser toleradas e até exigidas.
Depois da peste negra de 1348, a Saúde Pública de
Pádua ordenou que sempre que uma pessoa morresse de causas desconhecidas, o
corpo só poderia ser sepultado após o exame de um médico. E, para encontrar os
gânglios linfáticos enfartados, que eram o diagnóstico da peste, era necessário
dissecar o corpo e os estudantes de medicina de Pádua aprenderam com esses
espécimes. Como os corpos de criminosos executados eram a fonte principal de
cadáveres, os cadáveres femininos eram particularmente escassos, o que
constituía mais um obstáculo à descoberta do processo de procriação e de
gestação. Só gradualmente a anatomia deixou de significar a abertura ocasional
de um corpo para responder a uma pergunta específica e passou a significar o
estudo sistemático do corpo.
Como vimos, existiam muitos obstáculos ao estudo
continuado do corpo humano e, a falta de refrigeração, exigia que uma anatomia
fosse efetuada de forma apressada, antes de o corpo se decompor. E, mesmo nas
melhores universidades só se efetuavam dissecações anualmente. Durante séculos
na Europa, os únicos corpos legalmente disponíveis para uma dissecação eram de
criminosos executados que raramente chegavam intatos. Na Inglaterra, a execução
habitual era por enforcamento, mas a algumas pessoas de elevada categoria era
concebido o privilégio de serem decapitados.
Eram raras as oportunidades de dissecar cadáveres que
não tivessem sido mutilados durante a execução. Professores aproveitavam todos
os ensejos para se apoderarem de bocados de corpos humanos, com as mais
desagradáveis consequências. Vesálio aproveitava todas as oportunidades –
legais ou não – para se abastecer de espécimes. Em Pádua, Vesálio interessou um
juiz pela sua investigação e, ele não só lhe ofereceu corpos de criminosos executados,
como até adiou execuções para que os cadáveres ainda estivessem frescos quando
Vesálio estivesse preparado para dissecá-los. Corria o boato de que estudantes
roubavam corpos das sepulturas e, após dissecá-los, lançavam seus restos ao rio
ou os atiravam aos cães. Em consequência disso, em 1597 um decreto exigia
funeral público para os restos de todo o cadáver dissecado.
Embora ensinasse a partir do texto de Galeno, Vesálio
percebeu vários exemplos em que o mestre descrevia o que não se encontrava no
corpo humano, que ele não tardou a compreender que a “sua anatomia humana” era
na realidade apenas um compêndio das declarações sobre animais em geral. Seus
estudos anatômicos culminaram com o livro que lhe deu fama: “De Humanis
Corporis Fabrica”, conhecido como “Fábrica” apareceu em
1543, mesmo ano do livro de Copérnico. Destinado a ser para anatomia o que a
obra de Copérnico foi para a astronomia, justificaria o trabalho de uma vida
inteira, mas foi completado entre os seus 26 e 28 anos.
Como estava decidido a mostrar com precisão apenas o
que confirmara com seus olhos e suas mãos, Vesálio sabia que o valor científico
do seu produto dependeria da qualidade das suas ilustrações. Por isso procurou
os melhores artistas xilogravadores venezianos. Desenhista bem-dotado, ele
próprio desenhou algumas das suas figuras. A escolha do impressor adequado para
sua obra era de importância crucial e Vesálio sabia disso. Poderia parecer que
um professor de Pádua mandasse imprimir sua obra na capital. Veneza fora desde
os primeiros tempos da imprensa, um quartel-general de grandes casas
impressoras.
No princípio do século XVI, a arte de imprimir já
atingira o apogeu nos produtos elegantes de Aldo Manúcio. O famoso frontispício
([1]) ilustrado da “Fábrica” reproduzia o
congestionado cenário de uma “anatomia pública”, tal como exigiam os
estatutos da Universidade de Pádua. Na ilustração, o próprio Vesálio tocava nos
órgãos abdominais expostos do cadáver aberto de uma mulher. Para realçar que se
tratava de uma anatomia humana, vê-se um esqueleto acima do cadáver, enquanto
uma figura masculina nua olha de lado. Em 1º plano, sentados debaixo da mesa de
dissecação, estão dois barbeiros afiando as lâminas do professor. No canto
esquerdo, um macaquinho e, no direito, vê-se um cão.
O título da sua obra (“De Humanis Corporis Fabrica”)
sugeria que ele estava interessado tanto na estrutura quanto no funcionamento
e, para os estudantes, Vesálio realçava a estrutura interna do corpo,
servindo-se de um bocado de carvão para marcar na carne do cadáver a forma do
esqueleto interno. A obra se afasta da ordem da dissecação que fora determinada
pelo ritmo da putrefação e, em vez disso, começa pelos ossos (estrutura
fundamental do corpo) e prossegue para os músculos, para os sistemas vascular e
nervoso, órgãos abdominais, tórax, coração e cérebro.
Decorrido ½ século, a anatomia vesaliana predominava
nas escolas médicas europeias e o estudo da anatomia no Ocidente nunca mais
voltaria a ser o que era. O que Vesálio disse sobre o coração (ou cérebro) foi
pouco importante, quando comparado com o caminho aberto aos estudantes a fim de
aprenderem sobre todos os órgãos do corpo. Desacreditar Galeno não bastava e
tinha de haver um novo entusiasmo pela dissecação repetida. De nenhum outro
modo poderia o médico ter a certeza de que não descrevia anomalias.
A fim de satisfazer sua curiosidade sobre o
fluido do pericárdio, Vesálio fez questão de presenciar o esquartejamento de um
criminoso ainda vivo. Depois levou para estudar o coração, o pulmão e as
“vísceras”. Murmurava-se que a sua avidez por espécimes o levou – algumas vezes
– a dissecar corpos antes de estarem mortos. Depois de publicada, a “Fábrica”,
o jovem Vesálio trocou o estudo da anatomia pela prática da medicina e
conseguiu ser nomeado médico do imperador Carlos V. Na sua prática clínica
revelou-se muito especializado e, como a lascívia ([2]) e a
gula eram os pecados da corte, Vesálio preocupou mais com o “mal francês,
perturbações, gastrointestinais, e enfermidades crônicas dos seus pacientes”.
E, após isso, Vesálio viveu mais vinte anos.
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([1]) Gravura colocada
para formar o título de um livro.
([2]) Lascívia: significa sensualidade, libidinagem, luxúria. É uma
característica de quem tem despudor, quem tem modos libertinos, libidinosos,
quem tem propensão para a sensualidade.
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