Por Que a Elite da População
Brasileira Tinha Medo da Abolição da Escravatura? Qual Era o Tamanho da
Estrutura Escravagista no Brasil? Por Que nas Negociações Para o Reconhecimento
da Independência, a Abolição do Tráfico se Tornou Uma Questão de Honra Para o
Governo Britânico?
Em 1824, o mineiro Felisberto
Caldeira Brant Pontes – futuro Marquês de Barbacena – defendia a importação de
mercenários europeus, “homens altos e claros” para promover o branqueamento da
população brasileira. Brant se preocupava com “a peste revolucionária” que
poderia se propagar em um “país de tantos negros e mulatos”.
Documentos revelam o clima de medo
entre a parcela mais privilegiada da sociedade brasileira na Independência. No
confronto de opiniões e interesses observado no período, a ameaça de uma
rebelião escrava era vista como um perigo mais urgente do que todas as demais
dificuldades.
Esse era o inimigo comum que pairava
no horizonte do jovem país. E contra ele se uniram os nascidos de aquém e
além-mar, monarquistas e republicanos, liberais e absolutistas, federalistas e
centralizadores, maçons e católicos, comerciantes e senhores de engenho, civis
e militares.
Todos esses grupos que formavam a
elite brasileira, tinham consciência de que o fosso de desigualdade aberto nos
três (3) séculos anteriores poderia se revelar incontrolável se as ideias
libertárias que chegavam da Europa e dos Estados Unidos animassem os cativos a
se rebelar contra seus opressores. Diante de uma ameaça maior – a rebelião
escrava – conservadores e liberais convergiram em torno do imperador para
preservar os seus interesses. E, dessa forma, o Brasil conseguiu romper seus
vínculos com Portugal sem alterar a ordem social vigente.
Mas, tensões mantidas sob controle
pela coroa portuguesa no período colonial vieram à tona de forma violente
devido aos ecos da Revolução Francesa e seus desdobramentos em Portugal e no
Brasil. Foi como se uma panela de pressão entrasse em processo de fervura sem
uma válvula que deixasse escapar o vapor.
O ambiente das ideias revolucionárias
inoculou nos escravos as esperanças de melhorias que não se concretizaram. “Em
Portugal proclamou-se a Constituição que nos iguala aos brancos”, anunciou
o negro Argoim, líder de uma rebelião escrava que mobilizou 21 mil homens no
interior de Minas Gerais em 1820, ao tomar conhecimento da Revolução Liberal do
Porto.
Outro exemplo das expectativas nos
escravos é o grande número de petições que encaminhou à assembleia constituinte
de 1823. Numa delas, um grupo de escravos pediram que os deputados servissem de
mediadores numa disputa judicial que tratavam com sua proprietária, acusada de
tratá-los de forma violenta e, por isso, reivindicavam a alforria nos
tribunais. Na Guerra da Independência, milhares de cativos recrutados pelo
Exército e Marinha defenderam a causa brasileira esperando que, em troca,
teriam a liberdade.
Terminada a guerra, tudo continuou
como dantes. Assim, os escravos ficaram na condição de “órfãos da
Independência”, tanto quanto os índios, negro recém-libertos, mulatos,
mestiços, analfabetos e pobres que compunham a maioria dos brasileiros. Fazia
mais de 300 anos que o tráfico de negros sustentava a prosperidade econômica
colonial. Os escravos eram o motor das lavouras. Só durante o século 18 havia
entrado no Brasil mais de 1 milhão de escravos para trabalhar em Minas Gerais,
Goiás e Mato Grosso. A presença de tantos cativos era potencialmente explosiva
e o pavor de rebeliões tirava o sono dos brancos e bem-educados.
De todos os problemas brasileiros na
Independência, a escravidão foi o mais camuflado e mal resolvido e também
serviu para expor uma estranha contradição no pensamento dos mais
revolucionários da época. Os documentos e discursos falavam em liberdade e
direitos para todos, mas seus autores conviviam naturalmente com a escravidão,
como se a defesa dessas ideias não dissesse respeito aos negros.
Em comunicação secreta ao ministro
britânico em dezembro de 1823, o cônsul-geral da Inglaterra no Rio de Janeiro –
Henry Chamberlain – dizia-se surpreso com a força do tráfico de escravos no
Brasil: _ “Não há 10 pessoas em todo império que considerem esse comércio
como crime ou o encarem sob outro aspecto que não seja o de ganho e perda.
Acostumados a não fazer nada, a ver só os negros trabalharem, os brasileiros em
geral estão convencidos de que os escravos são necessários como animais de
carga, sem os quais os brancos não poderiam viver”.
Por convicção, alguns dos homens mais
poderosos da época defendiam o fim do tráfico negreiro e a abolição da
escravatura e, no entanto, foram incapazes de pôr em prática suas ideias. É o
caso do imperador D. Pedro I, autor em 1823, de um documento surpreendente
guardado no Museu Imperial de Petrópolis. Nele, o imperador defende o fim da
escravidão no Brasil e, as ideias ali expostas são claras, lógicas e de tamanha
lucidez que poderiam ser assinadas por qualquer dos grandes abolicionistas.
A pergunta é: Se, um ano após
a Independência, até o imperador era contra a escravidão, por que ela continuou
a existir no Brasil por tanto tempo? A resposta mostra que nem sempre
a vontade de quem está no poder é suficiente para mudar o curso da História.
Existem pressões sobre os governantes que limitam suas decisões e o Brasil
estava de tal forma viciado e dependente da mão de obra escrava que, na
prática, sua abolição na Independência se revelou impraticável.
O tráfico de escravos era um negócio
gigantesco, o qual movimentava centenas de navios e milhares de pessoas dos
dois lados do Atlântico. Incluía agentes na África, exportadores, armadores,
transportadores, seguradores, importadores e atacadistas que revendiam no Rio
de Janeiro para centenas de pequenos traficantes regionais que se encarregavam
de distribuí-los para as cidades, fazendas e minas do interior do país.
Os lucros eram astronômicos, pois em
1810 um escravo comprado em Luanda por 70 mil réis era revendido em Minas
Gerais por até 240 mil. Em 1812, metade dos trinta maiores comerciantes do Rio
de Janeiro se constituía de traficantes de escravos.
Diante desse cenário, manter a
escravatura foi uma das moedas de troca que D. Pedro e José Bonifácio de
Andrade e Silva usaram em 1822 na defesa de seu projeto monárquico
constitucional. Bonifácio, um abolicionista convicto, enviou a Pernambuco em
julho de 1822 um emissário com a promessa de que, em troca do apoio, o governo
imperial protegeria os senhores de engenho de uma eventual rebelião escrava.
Na Bahia de 1822, para a maioria dos
proprietários de escravos, terras, canaviais, engenhos, currais de gado e
sobrados era indiferente que o Brasil fosse monárquico absolutista ou
constitucional, se separasse ou permanecesse vinculado a Portugal, com uma
única condição: a garantia de que a escravidão permaneceria intocada. A
escravidão estava de tal forma enraizada no Brasil que resistiu a todas as
pressões exercidas contra ela pela Grã-Bretanha, a maior potência econômica e
militar da época e cuja opinião pública exigia a imediata abolição do tráfico
negreiro.
Nas negociações para o reconhecimento
da Independência, a abolição do tráfico se tornou questão de honra para o
governo britânico. Como resultado dessas negociações, D. Pedro assinou em 1826
um novo acordo com a Grã-Bretanha, no qual se comprometia a extinguir o tráfico
quatro anos mais tarde, em 1830.
A decisão só foi oficializada em
1831, que também declarava livres todos os escravos vindos de fora do império e
impunha penas aos traficantes. E, como nas ocasiões anteriores, não passou de
promessa. Entre 1830 e 1839 entraram no Brasil mais de 400 mil negros africanos
e o motivo foi o crescimento das lavouras de café.
As expectativas frustradas em 1822 se
materializaram em rebeliões nos anos seguintes por todo o Brasil e contribuíram
para aumentar as dificuldades da Regência, o período de transição entre a
abdicação de D. Pedro I em 1831 e a maioridade de seu filho D. Pedro II, em
1840. Movimentos como a Guerra dos Cabanos, em Pernambuco (1832), a Balaiada,
no Maranhão e no Piauí (1834), a Cabanagem, no Pará (1831) e a Revolta dos
Malês, na Bahia (1835), tinham caráter difuso, com reivindicações difíceis de
entender, mas nasceram sempre de camadas mais humildes da população. É um
passivo que o Brasil carrega até hoje.
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