quarta-feira, 19 de abril de 2023

Os Órfãos da Independência no Brasil

 

Por Que a Elite da População Brasileira Tinha Medo da Abolição da Escravatura? Qual Era o Tamanho da Estrutura Escravagista no Brasil? Por Que nas Negociações Para o Reconhecimento da Independência, a Abolição do Tráfico se Tornou Uma Questão de Honra Para o Governo Britânico?

 




Em 1824, o mineiro Felisberto Caldeira Brant Pontes – futuro Marquês de Barbacena – defendia a importação de mercenários europeus, “homens altos e claros” para promover o branqueamento da população brasileira. Brant se preocupava com “a peste revolucionária” que poderia se propagar em um “país de tantos negros e mulatos”.

Documentos revelam o clima de medo entre a parcela mais privilegiada da sociedade brasileira na Independência. No confronto de opiniões e interesses observado no período, a ameaça de uma rebelião escrava era vista como um perigo mais urgente do que todas as demais dificuldades.

Esse era o inimigo comum que pairava no horizonte do jovem país. E contra ele se uniram os nascidos de aquém e além-mar, monarquistas e republicanos, liberais e absolutistas, federalistas e centralizadores, maçons e católicos, comerciantes e senhores de engenho, civis e militares.

Todos esses grupos que formavam a elite brasileira, tinham consciência de que o fosso de desigualdade aberto nos três (3) séculos anteriores poderia se revelar incontrolável se as ideias libertárias que chegavam da Europa e dos Estados Unidos animassem os cativos a se rebelar contra seus opressores. Diante de uma ameaça maior – a rebelião escrava – conservadores e liberais convergiram em torno do imperador para preservar os seus interesses. E, dessa forma, o Brasil conseguiu romper seus vínculos com Portugal sem alterar a ordem social vigente.

Mas, tensões mantidas sob controle pela coroa portuguesa no período colonial vieram à tona de forma violente devido aos ecos da Revolução Francesa e seus desdobramentos em Portugal e no Brasil. Foi como se uma panela de pressão entrasse em processo de fervura sem uma válvula que deixasse escapar o vapor.

O ambiente das ideias revolucionárias inoculou nos escravos as esperanças de melhorias que não se concretizaram. “Em Portugal proclamou-se a Constituição que nos iguala aos brancos”, anunciou o negro Argoim, líder de uma rebelião escrava que mobilizou 21 mil homens no interior de Minas Gerais em 1820, ao tomar conhecimento da Revolução Liberal do Porto.

Outro exemplo das expectativas nos escravos é o grande número de petições que encaminhou à assembleia constituinte de 1823. Numa delas, um grupo de escravos pediram que os deputados servissem de mediadores numa disputa judicial que tratavam com sua proprietária, acusada de tratá-los de forma violenta e, por isso, reivindicavam a alforria nos tribunais. Na Guerra da Independência, milhares de cativos recrutados pelo Exército e Marinha defenderam a causa brasileira esperando que, em troca, teriam a liberdade.

Terminada a guerra, tudo continuou como dantes. Assim, os escravos ficaram na condição de “órfãos da Independência”, tanto quanto os índios, negro recém-libertos, mulatos, mestiços, analfabetos e pobres que compunham a maioria dos brasileiros. Fazia mais de 300 anos que o tráfico de negros sustentava a prosperidade econômica colonial. Os escravos eram o motor das lavouras. Só durante o século 18 havia entrado no Brasil mais de 1 milhão de escravos para trabalhar em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. A presença de tantos cativos era potencialmente explosiva e o pavor de rebeliões tirava o sono dos brancos e bem-educados.

De todos os problemas brasileiros na Independência, a escravidão foi o mais camuflado e mal resolvido e também serviu para expor uma estranha contradição no pensamento dos mais revolucionários da época. Os documentos e discursos falavam em liberdade e direitos para todos, mas seus autores conviviam naturalmente com a escravidão, como se a defesa dessas ideias não dissesse respeito aos negros.

Em comunicação secreta ao ministro britânico em dezembro de 1823, o cônsul-geral da Inglaterra no Rio de Janeiro – Henry Chamberlain – dizia-se surpreso com a força do tráfico de escravos no Brasil: _ “Não há 10 pessoas em todo império que considerem esse comércio como crime ou o encarem sob outro aspecto que não seja o de ganho e perda. Acostumados a não fazer nada, a ver só os negros trabalharem, os brasileiros em geral estão convencidos de que os escravos são necessários como animais de carga, sem os quais os brancos não poderiam viver”.

Por convicção, alguns dos homens mais poderosos da época defendiam o fim do tráfico negreiro e a abolição da escravatura e, no entanto, foram incapazes de pôr em prática suas ideias. É o caso do imperador D. Pedro I, autor em 1823, de um documento surpreendente guardado no Museu Imperial de Petrópolis. Nele, o imperador defende o fim da escravidão no Brasil e, as ideias ali expostas são claras, lógicas e de tamanha lucidez que poderiam ser assinadas por qualquer dos grandes abolicionistas.

A pergunta é: Se, um ano após a Independência, até o imperador era contra a escravidão, por que ela continuou a existir no Brasil por tanto tempo? A resposta mostra que nem sempre a vontade de quem está no poder é suficiente para mudar o curso da História. Existem pressões sobre os governantes que limitam suas decisões e o Brasil estava de tal forma viciado e dependente da mão de obra escrava que, na prática, sua abolição na Independência se revelou impraticável.

O tráfico de escravos era um negócio gigantesco, o qual movimentava centenas de navios e milhares de pessoas dos dois lados do Atlântico. Incluía agentes na África, exportadores, armadores, transportadores, seguradores, importadores e atacadistas que revendiam no Rio de Janeiro para centenas de pequenos traficantes regionais que se encarregavam de distribuí-los para as cidades, fazendas e minas do interior do país.

Os lucros eram astronômicos, pois em 1810 um escravo comprado em Luanda por 70 mil réis era revendido em Minas Gerais por até 240 mil. Em 1812, metade dos trinta maiores comerciantes do Rio de Janeiro se constituía de traficantes de escravos.

Diante desse cenário, manter a escravatura foi uma das moedas de troca que D. Pedro e José Bonifácio de Andrade e Silva usaram em 1822 na defesa de seu projeto monárquico constitucional. Bonifácio, um abolicionista convicto, enviou a Pernambuco em julho de 1822 um emissário com a promessa de que, em troca do apoio, o governo imperial protegeria os senhores de engenho de uma eventual rebelião escrava.

Na Bahia de 1822, para a maioria dos proprietários de escravos, terras, canaviais, engenhos, currais de gado e sobrados era indiferente que o Brasil fosse monárquico absolutista ou constitucional, se separasse ou permanecesse vinculado a Portugal, com uma única condição: a garantia de que a escravidão permaneceria intocada. A escravidão estava de tal forma enraizada no Brasil que resistiu a todas as pressões exercidas contra ela pela Grã-Bretanha, a maior potência econômica e militar da época e cuja opinião pública exigia a imediata abolição do tráfico negreiro.

Nas negociações para o reconhecimento da Independência, a abolição do tráfico se tornou questão de honra para o governo britânico. Como resultado dessas negociações, D. Pedro assinou em 1826 um novo acordo com a Grã-Bretanha, no qual se comprometia a extinguir o tráfico quatro anos mais tarde, em 1830.

A decisão só foi oficializada em 1831, que também declarava livres todos os escravos vindos de fora do império e impunha penas aos traficantes. E, como nas ocasiões anteriores, não passou de promessa. Entre 1830 e 1839 entraram no Brasil mais de 400 mil negros africanos e o motivo foi o crescimento das lavouras de café.

As expectativas frustradas em 1822 se materializaram em rebeliões nos anos seguintes por todo o Brasil e contribuíram para aumentar as dificuldades da Regência, o período de transição entre a abdicação de D. Pedro I em 1831 e a maioridade de seu filho D. Pedro II, em 1840. Movimentos como a Guerra dos Cabanos, em Pernambuco (1832), a Balaiada, no Maranhão e no Piauí (1834), a Cabanagem, no Pará (1831) e a Revolta dos Malês, na Bahia (1835), tinham caráter difuso, com reivindicações difíceis de entender, mas nasceram sempre de camadas mais humildes da população. É um passivo que o Brasil carrega até hoje.

  

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