Por Que a Transcrição de Livros Virou Uma Indústria no Século XV? Qual Era o Papel das Guildas no Processo de Comercialização de Livros?
Próximo do fim da Idade Média havia poucas bibliotecas nas universidades da Europa, mas os professores continuavam a precisar de livros. Era possível obtê-los de mercadores itinerantes pouco merecedores de confiança, os quais os professores não tinham qualquer controle. Alugar manuais era um privilégio valioso que poderia enriquecer a universidade e impedir a circulação de textos heréticos.
O catálogo
mais antigo da Universidade de Paris (de 1286) enumera 140 títulos diferentes
para alugar. Na Bolonha era exigido a cada professor que fornecesse ao estacionário
([1]) da universidade uma cópia das suas
lições a fim de poderem ser transcritas, alugadas ou vendidas.
Em meados do
século XV a feitura (transcrição) de livros era uma próspera indústria,
centralizada nas cidades universitárias e o vendedor de livros Vespasiano da
Bisticci tinha a seu serviço cerca de 40 escribas, a fim de copiarem 200 obras
para a biblioteca dos Médici. Os editores de livros utilizavam já a xilografia
para ilustrá-los e decorreu algum tempo, antes de as universidades terem as
suas próprias bibliotecas – que depois cresceram rapidamente.
A imprensa
multiplicou os livros em números nunca antes imaginados e, antes de Gutenberg,
os livros manuscritos da Europa ainda podiam ser contados na casa dos milhares.
A população da Europa provavelmente ficava aquém de uma centena de milhões e a
maioria das pessoas era analfabeta. Em 1500, devia haver uns 10 milhões de
livros impressos em circulação, além da crescente reserva de livros
manuscritos.
As primeiras
décadas da imprensa na Europa foram assinaladas por um aumento do número de
cópias de cada edição. Até cerca de 1480, alguns livros tinham edições de
apenas 100 exemplares e, em 1490, a média atingiu os 500. Em 1501, quando os
mercados estavam mais bem organizados e o preço dos livros mais baixos, os
historiadores deixaram de falar de incunábulos e o número de uma edição média
aumentou para próximo dos números modernos.
Quando a
própria imprensa se tornou uma instituição estabelecida, os impressores
organizaram suas guildas ([2])
e tentaram limitar as edições a fim de manterem a estabilidade dos postos de
trabalho. Um novo elemento crucial da confecção de um livro foi a necessidade
para o editor de avaliar a dimensão do público comprador de cada livro. Quantos
haveria para mais uma edição de Cícero? E para um tratado jurídico? Quantas
pessoas comprariam um livro de viagens ou um manual de astronomia?
O simples
fato de um livro ser impresso revelava que algum impressor estava disposto a
arriscar seu dinheiro baseado na possibilidade de que milhares de leitores
pagariam para compartilhar seu conteúdo. O ato de imprimir se tornou uma
declaração sem precedentes e não autorizada, de um interesse público. É claro
que os governos podiam conceder licenças à imprensa ou controlá-la de outras
formas. Mas, a empresa do impressor era uma nova ameaça para governantes
repressores.
No apogeu das
bibliotecas medievais os livros se tornaram tão valiosos que eram acorrentados
às prateleiras. Centenas desses volumes cativos ainda podem ser vistos nas
prateleiras da biblioteca da Catedral de Hereford. Nenhuma das consequências da
impressão teve maior alcance do que o poder da imprensa para libertar os livros
das suas cadeias. Quando se tornaram mais numerosos, os livros deixaram de ser
expostos de lado e ficaram em pé, ao lado uns dos outros mostrando a lombada, o
título e o autor.
A Biblioteca
de Madri substituiu as antigas baias monásticas (tipo capela) por prateleiras
que forravam as paredes, oferecendo vasto campo aos que quisessem regalar os
olhos. Dispor livros numa biblioteca se tornou uma ciência e, em 1627, o
bibliotecário do Cardeal Mazarino – Gabriel Naudé – escreveu um pioneiro
tratado sobre biblioteconomia. A Biblioteca Mazarino de 40 mil volumes, reunida
e organizada por Naudé, foi concebida para um grande colecionador privado
disposto a colocar seus tesouros à disposição de todos os que desejassem ir lá
estudar.
A
multiplicação de livros sobre as matérias desafiou os filósofos a fazerem um
levantamento de todo o terreno do saber. O filósofo alemão Leibniz ajudou ao
Duque de Hanover a organizar sua coleção de três mil volumes e a Biblioteca de
Ducal, para a qual elaborou um dos primeiros catálogos alfabéticos de autores.
O seu desenho de biblioteca à prova de incêndio colocava galerias e prateleiras
ao redor das colunas. Mas o Duque rejeitou o plano e construiu a biblioteca de
madeira, resultando no fato de os leitores baterem os dentes de frio no Inverno
porque era grande risco uma caldeira de aquecimento.
Leibniz via a
biblioteca como uma congregação de todo o saber e foi considerado um marco na
transição das coleções reais e eclesiásticas destinadas à minoria privilegiada
para as bibliotecas públicas, as quais eram destinadas a todos. No século
seguinte as suas visões seriam concretizadas na carreira do italiano Sir
Anthony Panizzi, apaixonado e enérgico homem de ação.
Forçado a
fugir de Brescello, onde aderira a sociedade secreta que conspirava contra os ocupantes
austríacos, acabou condenado à morte à revelia. Panizzi encontrou refúgio na
Inglaterra, onde foi nomeado professor de Literatura Italiana na Universidade
de Londres.
Mas, como
aparecessem alunos, abandonou o cargo para se integrar aos quadros do Museu
Britânico em 1831. Nos 35 anos seguintes revigorou esse lugar para fazer dele o
modelo de uma biblioteca nacional no estilo moderno, indo ao encontro do
público leitor.
“Que
falta eu sinto de livros os quais possa colher alguns fatos”, lamentou-se
Thomas Carlyle quando se mudou da Escócia para Londres. “Por que não há uma
biblioteca de Sua Majestade em todas as cidades?”. O Museu Britânico onde
Panizzi foi trabalhar estava mal equipado para as pretensões de Carlyle, pois
vários mapas e quadros acumulavam-se de forma desordena misturando livros e
manuscritos.
A biblioteca
particular de Jorge III foi juntar-se à antiga Biblioteca Real e estava sendo
construído um novo edifício quando Panizzi passou a fazer parte do pessoal. Em
1837 ele foi nomeado zelador do Departamento de Livros Impressos do museu e, em
1856, bibliotecário principal. Seu temperamento não era propício para apaziguar
os curadores, os quais o mantinham numa “rédea” bem curta. A biblioteca pública
“em todas as cidades” que Carlyle exigia ainda estava por vir e
Panizzi ainda exigia que os usuários mostrassem cartas de apresentação a fim de
entrarem nas salas de leitura e, por isso mesmo, os livros não circulavam.
Passaram três
séculos depois de Gutenberg antes de haver qualquer progresso no sentido de
admitir os deficientes visuais no mundo dos livros. Os cegos pareciam
condenados à idade da literatura oral. Na era da Revolução Francesa, um
professor de caligrafia francês (Valentin Haüy) teve a ideia de que os
deficientes visuais poderiam ser capazes de ler com os dedos. Desenhou um tipo
itálico em letras em relevo, que deu a conhecer aos alunos do Instituto Real
Para Jovens Cegos, por ele fundado em Paris no ano de 1785.
A fim de se
sentirem à vontade no mundo da linguagem escrita, os deficientes visuais
precisavam que lhes fornecessem um sistema útil para ler e escrever. A solução
só seria encontrada por alguém imaginativo para conseguir abandonar o alfabeto
tipográfico das pessoas normais. Seguindo o exemplo do novo sistema de
estenografia, um inglês – T. M. Lucas – concebeu um conjunto de símbolos
fonéticos em relevo, no qual transcreveu o Novo Testamento em 1837.
O problema da
leitura pelos dedos foi resolvido por um engenhoso deficiente visual de 16 anos
– Louis Braille – que ficara cego aos 3 anos, quando espetou acidentalmente uma
faca num dos olhos. Tornou-se um exímio violoncelista e, quando tinha apenas 10
anos, foi-lhe concedida uma bolsa para o Instituto de Haüy que já obtivera
algum sucesso no ensino de crianças cegas, com alfabeto romano gravado em
relevo.
Achando o
alfabeto romano em relevo ilegível, Braille decidiu arranjar um sistema que
permitisse aos deficientes visuais ler e escrever. Ele encontrou sua pista não
na sala de aula, mas no sistema proposto aos soldados á noite no campo de
batalhas. Esses, quando precisavam se comunicar não se atreviam a acender uma
luz e, dessa forma, eles compartilhavam dos mesmos problemas dos cegos.
A “escrita
noturna” – inventada por um capitão – utilizava uma grelha de 12 pontos em
relevo, onde se agrupava e combinavam-se esses pontos de várias formas a fim de
representarem letras e sons. O ponto fraco do sistema era a sua “célula” de 12
pontos suficientemente fácil para ser vista por pessoas normais, mas inadequada
para dedos leitores e impraticável para escrever. Braille reduziu a “célula” de
12 para 6 pontos em relevo e depois imaginou um estilo e uma moldura simples,
como instrumento de escrita. Daí, diz-se que Braille foi o Gutenberg dos cegos
e eles ainda percorrem os caminhos inventados por esse engenhoso rapaz francês.
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([1]) Papelaria ou artigos de papelaria
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