quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

O Caminho Para Uma Literatura Mundial

 Por Que o Esperanto Não Prosperou Como Língua Universal? Em Que Sentido a Tradução da Bíblia do Foi um Grande Benefício? De Que Forma o Inglês Padrão Foi Estabelecido?




 De tempos em tempos, espíritos engenhosos vêm tentando inventar uma língua mundial única, mas nenhum homem (ou governo) conseguiu inventar uma língua para uma nação e, muito menos, para o Mundo. A mais bem-sucedida – o esperanto – foi concebida por um oftalmologista polaco em 1877, com o objetivo de fornecer uma 2ª língua simples a todos os povos de todas as partes do Mundo.

Ele tentou fazer do esperanto uma língua fácil de aprender, com uma gramática e uma pronúncia regulares e, quase um século depois da sua invenção, a mais atraente das línguas tem apenas 100 mil falantes espalhados em 83 países. Mas, nem mesmo o esperanto foi totalmente inventado, pois seu vocabulário deriva de palavras europeias e, a maioria, das línguas românicas.

Existem cerca de 4 mil línguas mortas ou vivas no Mundo e uma comunidade mundial da palavra falada, escrita e impressa só seria alcançada através da arte da tradução, a qual tornaria possível qualquer pessoa descobrir a literatura mundial. Nas comunidades pré-alfabetizadas as pessoas das comunidades linguísticas diferentes fazem-se entender através dos gestos, das expressões faciais e do tom da voz e não existe nenhum substituto para o tradutor vivo, a não ser aprender a língua.

Na sua primeira viagem, Cristóvão Colombo levou consigo um homem que sabia falar árabe e, por isso mesmo, Colombo esperava que soubesse se comunicar com o imperador chinês. Durante séculos, a arte da tradução tinha ajudado leitores a transpor a barreira da língua, A tradução da Bíblia, feita por São Jerônimo, do hebreu e do grego, foi um grande benefício para a cristandade culta e traduções de Platão, Aristóteles, Ptolomeu e manuscritos árabes de matemática, astronomia e medicina entraram na textura do pensamento ocidental.

No fim do século XV foram impressas na Europa – em traduções latinas – pelo menos 20 obras escritas em árabe e, embora as línguas vernáculas estreitasse a visão das classes letradas para obras na sua própria língua, os livros impressos ofereciam novas oportunidades de se tornarem cosmopolitas. Quando Francisco I fez do francês de Paris a língua oficial, pagou para que fizessem traduções dos clássicos em francês e, dessa forma, a cultura clássica se tornou acessível aos franceses que não sabiam ler grego ou latim.

Os autores clássicos eram o investimento mais seguro para os editores e também para os compradores de livros e, na Europa do fim do século XVI, enquanto havia 263 edições latinas de Virgílio, também havia 72 traduções em italiano, 27 em francês, 11 em inglês, 5 em alemão, 5 em espanhol e 2 em flamenco. Isso nos permite imaginar como seríamos provincianos se nossa leitura fosse confinada às obras originalmente escritas no nosso vernáculo.

Não podemos avaliar o significado que a tradução teve para a civilização, pois os ingleses do século XVIII puderam ler as traduções feitas por Sir William Jones do árabe, do hindu e do persa que os americanos distantes incluíram na Biblioteca do Congresso. As obras de Shakespeare foram objeto de extensa literatura crítica na Alemanha através de Lessing e Schlegel, pois era norma que atores e atrizes europeus mostrassem o que valiam em papéis shakespearianos.

Antes do fim do século XIX, os europeus cultos se sentiam à vontade nas grandes obras do seu continente e de outros continentes, e os autores escreviam para uma audiência mundial. Os tradutores são patriotas que enriqueceram a sua língua nacional e, apesar disso, só raramente lhes tem sido prestada a devida justiça. Os dicionários começaram como guias para transporem as barreiras entre línguas, antes de guiarem os leitores na sua própria língua.

Aliás, a palavra “dicionário” vem do latim “dicionarium” que significava “um repertório de frases ou palavras”. Na Europa os dicionários apareceram para servir a classe culta e, na Antiguidade, eles eram compilações não elaboradas em ordem alfabética. O primeiro mais bem-sucedido dos dicionários impressos foi de latim-italiano de um monge Agostinho (Ambrosio Calepino), o qual foi se tornando mais poliglota. Em 1590 ele ajudava o leitor em 11 línguas, incluindo o polonês e o húngaro.

O êxito de Calepino incitou o empreendedor francês Robert Estienne a publicar uma edição melhorada com o generoso patrocínio do rei. Dessa forma, Francisco I ordenou a ele que desse à biblioteca real um exemplar de cada livro que publicasse em grego e criou o que foi o 1º depósito nacional de biblioteca. No século XVI, os Estiennes fizeram de Paris a cidade líder do mercado livreiro continental como Veneza fora antes.

Além de ser pioneiro na lexicografia, Robert Estienne ajudou as classes letradas da Europa a descobrir a riqueza linguística oculta nos seus próprios vernáculos. Editou dicionários escolares de latim e francês e foi pioneiro ao publicar um dicionário completo de francês para o latim que incluía termos técnicos. Assim, ele ajudou a criar uma língua padrão para a sua nação.





Em Veneza apareceu o 1º dicionário bilíngue impresso para o mercador e o cidadão comum, quando Adam von Rottweill imprimiu o seu “Vocabulário Italiano Teutônico” (1477) e, depois disso, em 1480 Caxton imprimiu um vocabulário de francês-inglês de 26 folhas. Esses são os primeiros exemplos conhecidos dos livros de frases que viriam a ajudar os viajantes atrapalhados. A utilização por Estienne dos “melhores autores” constituiu o meio pelo qual os lexicógrafos estabeleceram os seus padrões de correção das novas línguas nacionais. O 1º dicionário padrão amplo de uma só língua foi publicado em Veneza em 1612 e serviu de modelo a outros dicionários europeus monolíngues de reconhecida autoridade.

O “inglês” padrão foi estabelecido empiricamente, e por indivíduos, em contraste com o produto de academias mantidas pelo Estado de outros lados. Como os primeiros protestantes ingleses queriam ajudar os leitores comuns a compreender a Bíblia em inglês, a corrente da lexicografia inglesa brotou das listas de palavras elaboradas para ajudar os devotos e, uma das primeiras listas foi anexada à tradução inglesa do Pentateuco, em 1530.

O exemplo da Inglaterra mostrou como o esclarecimento podia decorrer de um alfabetismo difundido numa língua compartilhada por milhões de pessoas. Roger Ascham – preceptor ([1]) particular da Rainha Isabel – enumerou uma das primeiras críticas da educação britânica, os males de viajar à toa ao estrangeiro instigou os jovens a dominarem a sua própria língua inglesa.

Outro reformador isabelino (Richard Mulcaster) ajudou a proporcionar o equipamento impresso e, trinta anos de ensino, convenceram-no de que os professores, advogados e médicos deveriam receber treino para desempenharem a sua profissão. Ele insistiu para que as escolas abrissem vagas às mulheres, as quais também deveriam ter acesso às universidades. E também argumentou que os professores deveriam respeitar as diferenças entre crianças, que o currículo para cada aluno não deveria ser determinado pela idade, mas pela preparação e, além disso, que os professores mais competentes deveriam ser escolhidos para os primeiros anos da vida escolar dos alunos.

Depois de Caxton imprimir o 1º livro inglês, nenhuma das novas línguas nacionais floresceu mais do que o inglês e isso ocorreu sem o auxílio de um dicionário amplo ou “autorizado”. Então, o “Dicionário” do Dr. Johnson demonstrou o poder dos dicionários, pois a obra foi notável pela sua qualidade e também como um monumento do heroísmo literário.

Johnson escreveu definições de 43 mil palavras sob as quais foram coladas as fichas das citações e, além disso, seu Dicionário foi escrito com pouco auxílio dos eruditos e nenhum patrocínio dos poderosos. Ele criou as normais do inglês padrão, a que deu existência – pela força de um dicionário impresso – e, ao mesmo tempo, forneceu um auxiliar sem precedentes a todos os exploradores da literatura inglesa.

O Dr. Johnson não lamentou nem ignorou o crescimento orgânico da língua, pois no seu eloquente prefácio, ele explicava que a língua era modificada de forma inevitável por conquistas, migrações, comércio e pelo progresso do pensamento e do conhecimento.

Antes do Dr. Johnson os melhores autores estavam convencidos de que, desde que o significado fosse claro para o leitor, não fazia nenhuma diferença o modo como o escritor escrevesse suas palavras. O problema fundamental de estabelecer uma ortografia inglesa uniforme decorria do fato de o alfabeto da língua inglesa provir de outra língua, pois o alfabeto romano não foi concebido para os sons ingleses.

A comunidade em geral seguiu o seu próprio caminho e os melhores autores ingleses ortografaram ao sabor do capricho, até que no século XVIII, listas de palavras impressas e a crescente popularidade dos dicionários rudimentares provocaram a ideia de que podia haver apenas uma forma de escrever uma palavra.

Em 1857, a Philological Society (de Londres) iniciou planos para um dicionário histórico e, Murray, um obscuro professor assistente, chamou a responsabilidade para si e deu-lhe forma. O objetivo era exemplificar cada palavra jamais usada em inglês e revelar o seu significado variável. Antes de 1900, as fichas com esses exemplos excediam os cinco milhões. O resultado poria à vista de todos o caráter susceptível, variável e esquivo de uma língua mundial viva ao longo de vários séculos.

  

 

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([1]) Aquele que dá preceitos ou instruções; educador, mentor, instrutor.



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