quinta-feira, 7 de setembro de 2023

CATALOGANDO TODA A CRIAÇÃO HUMANA

 O Que Continham os Herbóreos Ilustrados de Dioscórides?  Por Que os Naturalistas Dispunham as Plantas e os Animais em Ordem Alfabética em Seus Herbóreos? Qual a Contribuição de John Ray ao Estudo das Plantas e dos Animais?

 

 


 

Durante 1500 anos, os eruditos europeus que quisessem se informar sobre a Natureza dependiam dos seus “herbóreos” ([1]) – autoridades textuais cuja tirania era semelhante à de Galeno sobre medicina – cujos deleites poéticos afastavam os leitores do mundo ao ar livre das plantas e dos animais. Hoje, quando lemos esses guias compreendemos por que motivo os europeus foram tão tardos a aprender a olhar.

Os herbóreos foram o legado de Dioscórides – antigo cirurgião grego – cuja obra abrangia a botânica, principalmente como uma espécie de farmacologia. Os médicos continuaram a tentar equiparar a descrição de Dioscórides das plantas por ele vista nas margens do Mediterrâneo, com o que eles encontravam na Alemanha, na Suíça ou na Escócia. Como Galeno, Dioscórides estudou a Natureza, mas seus discípulos estudaram Dioscórides.

Ele prestou atenção aos lugares onde as plantas cresciam, quando e como deveriam ser colhidas e até ao gênero de recipientes em que convinha serem guardadas. Como outros autores, ele teve poucos discípulos e muitos exegetas, os quais guardaram as suas palavras como um tesouro, mas esqueceram o seu exemplo. Ele deixou de ser um professor à medida que se tornou um texto.

Escrito em grego, o herbóreo de Dioscórides organizava mais de 600 plantas sob títulos comuns de uso familiar. Quais deveriam ser procuradas para óleos? E para os unguentos, gorduras ou aromas? Quais curavam dores de cabeça ou tiravam manchas da pele? Quais eram os frutos, vegetais ou raízes que deveriam ser comestíveis? Que plantas eram venenosas e quais os seus antídotos? Que remédios poderiam ser feitos de plantas?

Incontáveis manuscritos de Dioscórides atestam a sua popularidade durante a Idade Média e, através deles, ficamos sabendo que a baga do zimbro “é boa para o estômago, fazendo bem sob a forma de bebida às enfermidades do tórax, tosses e inchaços”. Também é diurética e, por isso “boa, tanto para convulsões como quebraduras e para as que têm úteros estrangulados”.

Mil anos de manuscritos de Dioscórides nos mostraram o que significava estar à mercê dos copistas. Com o passar dos séculos, as ilustrações afastam-se cada vez mais da Natureza, pois as cópias das cópias geraram folhas imaginárias, para respeitarem a simetria, ampliaram raízes e para encher a página retangular. As fantasias dos copistas se transformaram em convenções.

Escribas caprichosos se inspiraram não apenas nos nomes, mas igualmente nas propriedades das plantas, tornando a botânica num ramo da filologia. Quando a imprensa tipográfica surgiu na Europa, a informação botânica mais útil ainda se encontrava nos herbóreos antigos, conforme fora expandida e “aperfeiçoada” por gerações de escribas. Os herbóreos impressos depressa se tornaram mercadorias muito procuradas. Mas, o herbóreo tinha limites óbvios, pois ele fazia a cada planta a mesma pergunta: _ “Como podes divertir-me, alimentar-me, salvar-me ou curar-me?

 

A Invenção das Espécies

 

 

Enquanto os naturalistas dispuseram plantas e animais por ordem alfabética, o estudo da Natureza estaria condenado a permanecer livresco e provinciano. Essa ordem dependia da língua em que se lia. A versão latina da enciclopédia autorizada de Gesner abria com “Alces”, mas quando era traduzido para o alemão passava a começar com “Affe” (macacos), enquanto que em inglês o capítulo um descreve os “Antílopes”. Sendo assim, os naturalistas necessitavam de uma maneira de nomear plantas e animais que transcendesse as barreiras dos idiomas.

Mas, antes disso, tinham de ter uma compreensão do que queriam significar com um “gênero” de planta ou animal. Quando os naturalistas formulassem o conceito de “espécie” forneceriam um vocabulário útil para catalogar toda a Criação. E a busca de um modo “natural” de classificá-la daria origem a algumas das grandes aventuras intelectuais do tempo moderno.

Uma das dificuldades era a crença da geração espontânea. Aristóteles, por exemplo, escreveu que as moscas, os vermes e outros “animais pequenos” tinham origem espontânea na matéria em putrefação. No século XVII, o médico Jan Baptista van Helmont disse que viu ratos nascerem de farelo e trapos velhos.

Então, se era possível surgirem animais espontaneamente, não poderia ser exequível descrever uma espécie como uma criatura que reproduzia (ou era reproduzida) pelo seu próprio gênero.

Só gradualmente os naturalistas abandonaram essa ideia. O desprezo de Aristóteles por vermes e insetos “inferiores” baseava-se na sua convicção de que eles não possuíam os órgãos diferenciados encontrados em animais “superiores”. Depois de o microscópio mostrar como eram complexos os animais minúsculos, tornou-se mais fácil aos naturalistas defender que esses animais não surgiam por geração espontânea, mas tinham órgãos reprodutores.

A ideia das espécies foi defendida, desenvolvida e aplicada por biólogos muito antes de o conceito de geração espontânea ser abandonado e o problema não era resolvido porque tinha muitas implicações teológicas. Cientistas radicais achavam a ideia da geração espontânea útil à sua explicação científico-natural da origem da vida, a qual tinha tornado desnecessário o papel de Deus na Criação.

Louis Pasteur via a questão de forma diferente e, em sua opinião, um conceito ordenado das espécies era necessário para o trabalho criador de Deus no princípio.

As experiências de Louis Pasteur com a fermentação provaram a prevalência de microrganismos na poeira transportada pelo ar e acabaram demonstrando que o aquecimento e a exclusão de partículas aerotransportadas impediam o aparecimento de vegetação. A aplicação dessas ideias para “pasteurizar” leite e melhorar a produção de cervejas e vinhos ajudou a confirmação dos argumentos contra a geração espontânea.

Quando pensamos na dificuldade de conceber um sistema para classificar a Criação, não nos surpreende que os autores de herbóreos dispusessem seus itens de forma alfabética ou conforme suas utilizações humanas. Como as diferenças entre animais são mais evidentes do que as que as distinguem as plantas, os primeiros esforços no sentido de uma classificação geral foram feitos para os animais.

Para o seu primeiro esquema, escritores medievais se inspiraram em Aristóteles que separava os animais de sangue vermelho de todos os outros, os quais eram chamados de “sem sangue”. Os animais “com sangue” foram divididos conforme o modo de reprodução (vivíparos ou ovíparos) e conforme seu habitat e, os outros, divididos pela sua estrutura geral (de carapaça fraca, carapaça dura, insetos, etc.).

Aristóteles utilizou um conceito de gênero, embora para ele nem gênero nem espécie tivessem a definição profunda que adquiriram nos tempos modernos. O seu gênero (ou família), designava todos os agrupamentos maiores do que a espécie. O esboço de Aristóteles serviu bem aos naturalistas durante a Idade Média, quando chegavam ao seu conhecimento relativamente poucas plantas e animais novos. Eles se limitavam a comparar as plantas e os animais das suas regiões com os descritos nos textos antigos.

Depois da idade dos descobrimentos várias novidades invadiram o consciente europeu, mas como classificá-las? Como saber se determinadas plantas ou animais eram realmente novidades? Espécimes, livros, histórias de viajantes e desenhos da Natureza apareceram em profusão, mas produtores de enciclopédias como Gesner amontoaram a fantasia sobre a realidade.

Misturaram-se curiosidades de todos os lados como por exemplo um volume belamente ilustrado (de George Mark Graf) sobre as plantas e os animais do Brasil, o qual foi adulterado e misturado a obra de William Pies sobre a história natural da Índias orientais. Os leitores ficavam encantados com tais miscelâneas e a palavra “herbário” passou a ser usada para descrever a coleção de plantas secas, as quais se amontoavam nas bibliotecas de nobres e naturalistas. Mas, onde situar tais espécimes? Como rotular, organizar ou recuperar cada um deles?

Nos 100 anos entre meados do século XVII e XVIII fizeram-se mais progressos na catalogação das variedades da Natureza do que em todos os milênios precedentes. Assim como os produtores de mapas da Terra começaram pelas fronteiras evidentes da terra, do mar, das montanhas e dos desertos, também os naturalistas encontraram unidades evidentes entre plantas e animais. No entanto, até para a superfície da Terra foi necessário inventar os limites artificiais da latitude e da longitude, para que outros pudessem encontrar o seu caminho e fosse dado a todos compartilhar o conhecimento.

Em fins do século XX, as “espécies” tinham-se tornado tão familiares e úteis que pareciam essenciais ao nosso pensamento referente as plantas e animais, de certa forma óbvias no tecido da Natureza. Logo no princípio, o conceito de “espécie” foi um produto forçado e controverso. Foi uma sorte para o futuro da Biologia que John Ray inventasse a sua definição de espécie precisamente quando inventou. Ao contrário de esquemas anteriores, o dele aplicava-se tanto às plantas como aos animais e possibilitou ao seu sucessor a elaboração de um sistema para catalogar toda a Criação.

No Trinity College (em Cambridge) John Ray estudou clássico, teologia, ciências naturais e travou conhecimento com um membro rico do seu colégio (Francis Willughby), o que tornou possível passar a juventude como estudioso particular e independente. Após uma doença, Ray adquiriu o hábito de passear pelo campo e, junto com seu amigo, descrevia todas as plantas que via e depois foi observar as de outros lugares da Inglaterra.

Em 1670 completaram um catálogo de plantas, anotando as variações dos provérbios e do uso das palavras em diferentes partes do país. Juntos, visitaram os Países Baixos, a Alemanha, Itália, Sicília, Espanha e Suíça, estudando as plantas que encontravam. No caminho formaram um plano de catalogação, onde Ray se encarregava das plantas e Willughby dos animais. Esse projeto estava bem encaminhado até que Willughby morreu em 1672, com 37 anos.

Entretanto, as cartas de Ray tinham impressionado tanto a Royal Society que não só o elegeram seu membro, com também lhe ofereceram o importante cargo de secretário. Mas Ray recusou, pois Willughby deixou-lhe um ótimo testamento de forma que preferiu continuar a ser um naturalista independente. Mudou-se para a mansão de Willughby onde reviu os manuscritos do amigo e publicou dois estudos importantes, um sobre aves e outro sobre peixes – ambos sob o nome de Willughby.

Com o seu próprio nome, Ray publicou suas obras sobre plantas que marcaram uma época. Seu primeiro livro proporcionou a primeira definição exequível de “espécie” e o segundo ofereceu uma sistemática descrição de todas as plantas conhecidas na Europa. Embora começasse com Aristóteles, Ray ultrapassou-o para elaborar uma disposição mais satisfatória agrupando as plantas não apenas por características simples como sementes, mas de acordo com toda a sua estrutura. Ray também aperfeiçoou a classificação dos animais de Aristóteles, apelando de novo para as afinidades das formas e, desde então, esta disposição tem-se revelado útil. Depois disso, Ray estudou os quadrúpedes, as serpentes e fez a pioneira descrição dos insetos.

A grande realização de Ray foi a invenção do conceito moderno de “espécie”. O que Newton fez pelos estudiosos da Física com seus conceitos de gravitação e do movimento, Ray fez pelos estudiosos da Natureza dando-lhes uma alavanca para um sistema. Como muitas outras ideias que moldaram o Mundo, seu conceito era bem simples, mas a sua intuição audaciosa deve ter sido estimulada pelas extensas observações pessoais de campo. A visita de tantos espécimes diferentes acabou por lhe sugerir a convivência de um conceito de espécie e, ao contrário de seus predecessores, Ray descobriu um sistema de classificação que serviu tanto às plantas quanto aos animais.

Para ele, uma espécie de planta era um nome para “um conjunto de indivíduos que dão origem, através da reprodução, a novos indivíduos semelhantes a eles próprios”. A mesma definição era aplicada aos animais, pois touros e vacas pertenciam à mesma espécie porque, quando acasalavam, geravam uma criatura como eles próprios. Ray acreditava que cada espécie estava fixada e não variava ao longo das gerações, mas à medida que o tempo passou ele verificou que poderiam ser possíveis mutações insignificantes.

Depois de Darwin, houve biólogos que criticaram Ray pela sua crença na fixidez das espécies, proposição que o seu sucessor – Lineu – abraçou com entusiasmo ainda maior. Mas, no seu tempo, essa insistência de Ray na continuidade das espécies foi um gigantesco passo à frente e tornaria possível um catálogo de todo o mundo natural utilizável. Ray foi um dos primeiros a sugerir que os fósseis encontrados nas montanhas e dentro da terra não eram meros acidentes, mas restos de criaturas que outrora tinham vivido. E avançou com a possibilidade de muitas espécies pré-históricas se poderem ter extinguido.


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 ([1]) Relativo a erva; herbático

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