O Que Continham os Herbóreos Ilustrados de Dioscórides? Por Que os Naturalistas Dispunham as Plantas e os Animais em Ordem Alfabética em Seus Herbóreos? Qual a Contribuição de John Ray ao Estudo das Plantas e dos Animais?
Durante
1500 anos, os eruditos europeus que quisessem se informar sobre a Natureza
dependiam dos seus “herbóreos” ([1]) – autoridades textuais cuja tirania
era semelhante à de Galeno sobre medicina – cujos deleites poéticos afastavam
os leitores do mundo ao ar livre das plantas e dos animais. Hoje, quando lemos
esses guias compreendemos por que motivo os europeus foram tão tardos a
aprender a olhar.
Os
herbóreos foram o legado de Dioscórides – antigo cirurgião grego – cuja obra
abrangia a botânica, principalmente como uma espécie de farmacologia. Os
médicos continuaram a tentar equiparar a descrição de Dioscórides das plantas
por ele vista nas margens do Mediterrâneo, com o que eles encontravam na
Alemanha, na Suíça ou na Escócia. Como Galeno, Dioscórides estudou a Natureza,
mas seus discípulos estudaram Dioscórides.
Ele
prestou atenção aos lugares onde as plantas cresciam, quando e como deveriam
ser colhidas e até ao gênero de recipientes em que convinha serem guardadas.
Como outros autores, ele teve poucos discípulos e muitos exegetas, os quais
guardaram as suas palavras como um tesouro, mas esqueceram o seu exemplo. Ele
deixou de ser um professor à medida que se tornou um texto.
Escrito
em grego, o herbóreo de Dioscórides organizava mais de 600 plantas sob títulos
comuns de uso familiar. Quais deveriam ser procuradas para óleos? E para os
unguentos, gorduras ou aromas? Quais curavam dores de cabeça ou tiravam manchas
da pele? Quais eram os frutos, vegetais ou raízes que deveriam ser comestíveis?
Que plantas eram venenosas e quais os seus antídotos? Que remédios poderiam ser
feitos de plantas?
Incontáveis
manuscritos de Dioscórides atestam a sua popularidade durante a Idade Média e,
através deles, ficamos sabendo que a baga do zimbro “é boa para o estômago,
fazendo bem sob a forma de bebida às enfermidades do tórax, tosses e inchaços”.
Também é diurética e, por isso “boa, tanto para convulsões como quebraduras e
para as que têm úteros estrangulados”.
Mil anos
de manuscritos de Dioscórides nos mostraram o que significava estar à mercê dos
copistas. Com o passar dos séculos, as ilustrações afastam-se cada vez mais da
Natureza, pois as cópias das cópias geraram folhas imaginárias, para
respeitarem a simetria, ampliaram raízes e para encher a página retangular. As
fantasias dos copistas se transformaram em convenções.
Escribas
caprichosos se inspiraram não apenas nos nomes, mas igualmente nas propriedades
das plantas, tornando a botânica num ramo da filologia. Quando a imprensa
tipográfica surgiu na Europa, a informação botânica mais útil ainda se
encontrava nos herbóreos antigos, conforme fora expandida e “aperfeiçoada” por
gerações de escribas. Os herbóreos impressos depressa se tornaram mercadorias
muito procuradas. Mas, o herbóreo tinha limites óbvios, pois ele fazia a cada
planta a mesma pergunta: _ “Como podes divertir-me, alimentar-me, salvar-me
ou curar-me?”
A Invenção das Espécies
Enquanto
os naturalistas dispuseram plantas e animais por ordem alfabética, o estudo da
Natureza estaria condenado a permanecer livresco e provinciano. Essa ordem
dependia da língua em que se lia. A versão latina da enciclopédia autorizada de
Gesner abria com “Alces”, mas quando era traduzido para o alemão passava
a começar com “Affe” (macacos), enquanto que em inglês o capítulo um
descreve os “Antílopes”. Sendo assim, os naturalistas necessitavam de uma
maneira de nomear plantas e animais que transcendesse as barreiras dos idiomas.
Mas,
antes disso, tinham de ter uma compreensão do que queriam significar com um
“gênero” de planta ou animal. Quando os naturalistas formulassem o conceito de
“espécie” forneceriam um vocabulário útil para catalogar toda a Criação. E a
busca de um modo “natural” de classificá-la daria origem a algumas das grandes
aventuras intelectuais do tempo moderno.
Uma das
dificuldades era a crença da geração espontânea. Aristóteles, por exemplo,
escreveu que as moscas, os vermes e outros “animais pequenos” tinham origem
espontânea na matéria em putrefação. No século XVII, o médico Jan Baptista van
Helmont disse que viu ratos nascerem de farelo e trapos velhos.
Então, se
era possível surgirem animais espontaneamente, não poderia ser exequível
descrever uma espécie como uma criatura que reproduzia (ou era reproduzida)
pelo seu próprio gênero.
Só gradualmente
os naturalistas abandonaram essa ideia. O desprezo de Aristóteles por vermes e
insetos “inferiores” baseava-se na sua convicção de que eles não possuíam os
órgãos diferenciados encontrados em animais “superiores”. Depois de o
microscópio mostrar como eram complexos os animais minúsculos, tornou-se mais
fácil aos naturalistas defender que esses animais não surgiam por geração
espontânea, mas tinham órgãos reprodutores.
A ideia
das espécies foi defendida, desenvolvida e aplicada por biólogos muito antes de
o conceito de geração espontânea ser abandonado e o problema não era resolvido
porque tinha muitas implicações teológicas. Cientistas radicais achavam a ideia
da geração espontânea útil à sua explicação científico-natural da origem da
vida, a qual tinha tornado desnecessário o papel de Deus na Criação.
Louis
Pasteur via a questão de forma diferente e, em sua opinião, um conceito
ordenado das espécies era necessário para o trabalho criador de Deus no
princípio.
As
experiências de Louis Pasteur com a fermentação provaram a prevalência de
microrganismos na poeira transportada pelo ar e acabaram demonstrando que o
aquecimento e a exclusão de partículas aerotransportadas impediam o
aparecimento de vegetação. A aplicação dessas ideias para “pasteurizar” leite e
melhorar a produção de cervejas e vinhos ajudou a confirmação dos argumentos
contra a geração espontânea.
Quando
pensamos na dificuldade de conceber um sistema para classificar a Criação, não
nos surpreende que os autores de herbóreos dispusessem seus itens de forma
alfabética ou conforme suas utilizações humanas. Como as diferenças entre
animais são mais evidentes do que as que as distinguem as plantas, os primeiros
esforços no sentido de uma classificação geral foram feitos para os animais.
Para o
seu primeiro esquema, escritores medievais se inspiraram em Aristóteles que
separava os animais de sangue vermelho de todos os outros, os quais eram
chamados de “sem sangue”. Os animais “com sangue” foram divididos conforme o
modo de reprodução (vivíparos ou ovíparos) e conforme seu habitat e,
os outros, divididos pela sua estrutura geral (de carapaça fraca, carapaça
dura, insetos, etc.).
Aristóteles
utilizou um conceito de gênero, embora para ele nem gênero nem espécie tivessem
a definição profunda que adquiriram nos tempos modernos. O seu gênero (ou
família), designava todos os agrupamentos maiores do que a espécie. O esboço de
Aristóteles serviu bem aos naturalistas durante a Idade Média, quando chegavam
ao seu conhecimento relativamente poucas plantas e animais novos. Eles se
limitavam a comparar as plantas e os animais das suas regiões com os descritos
nos textos antigos.
Depois da
idade dos descobrimentos várias novidades invadiram o consciente europeu, mas
como classificá-las? Como saber se determinadas plantas ou animais eram
realmente novidades? Espécimes, livros, histórias de viajantes e desenhos da
Natureza apareceram em profusão, mas produtores de enciclopédias como Gesner
amontoaram a fantasia sobre a realidade.
Misturaram-se
curiosidades de todos os lados como por exemplo um volume belamente ilustrado
(de George Mark Graf) sobre as plantas e os animais do Brasil, o qual foi
adulterado e misturado a obra de William Pies sobre a história natural da
Índias orientais. Os leitores ficavam encantados com tais miscelâneas e a
palavra “herbário” passou a ser usada para descrever a coleção de plantas
secas, as quais se amontoavam nas bibliotecas de nobres e naturalistas. Mas,
onde situar tais espécimes? Como rotular, organizar ou recuperar cada um deles?
Nos 100
anos entre meados do século XVII e XVIII fizeram-se mais progressos na
catalogação das variedades da Natureza do que em todos os milênios precedentes.
Assim como os produtores de mapas da Terra começaram pelas fronteiras evidentes
da terra, do mar, das montanhas e dos desertos, também os naturalistas
encontraram unidades evidentes entre plantas e animais. No entanto, até para a
superfície da Terra foi necessário inventar os limites artificiais da latitude
e da longitude, para que outros pudessem encontrar o seu caminho e fosse dado a
todos compartilhar o conhecimento.
Em fins
do século XX, as “espécies” tinham-se tornado tão familiares e úteis que
pareciam essenciais ao nosso pensamento referente as plantas e animais, de
certa forma óbvias no tecido da Natureza. Logo no princípio, o conceito de
“espécie” foi um produto forçado e controverso. Foi uma sorte para o futuro da
Biologia que John Ray inventasse a sua definição de espécie precisamente quando
inventou. Ao contrário de esquemas anteriores, o dele aplicava-se tanto às
plantas como aos animais e possibilitou ao seu sucessor a elaboração de um
sistema para catalogar toda a Criação.
No
Trinity College (em Cambridge) John Ray estudou clássico, teologia, ciências
naturais e travou conhecimento com um membro rico do seu colégio (Francis
Willughby), o que tornou possível passar a juventude como estudioso particular
e independente. Após uma doença, Ray adquiriu o hábito de passear pelo campo e,
junto com seu amigo, descrevia todas as plantas que via e depois foi observar
as de outros lugares da Inglaterra.
Em 1670
completaram um catálogo de plantas, anotando as variações dos provérbios e do
uso das palavras em diferentes partes do país. Juntos, visitaram os Países
Baixos, a Alemanha, Itália, Sicília, Espanha e Suíça, estudando as plantas que
encontravam. No caminho formaram um plano de catalogação, onde Ray se
encarregava das plantas e Willughby dos animais. Esse projeto estava bem
encaminhado até que Willughby morreu em 1672, com 37 anos.
Entretanto,
as cartas de Ray tinham impressionado tanto a Royal Society que não só o
elegeram seu membro, com também lhe ofereceram o importante cargo de
secretário. Mas Ray recusou, pois Willughby deixou-lhe um ótimo testamento de
forma que preferiu continuar a ser um naturalista independente. Mudou-se para a
mansão de Willughby onde reviu os manuscritos do amigo e publicou dois estudos
importantes, um sobre aves e outro sobre peixes – ambos sob o nome de
Willughby.
Com o seu
próprio nome, Ray publicou suas obras sobre plantas que marcaram uma época. Seu
primeiro livro proporcionou a primeira definição exequível de “espécie” e o
segundo ofereceu uma sistemática descrição de todas as plantas conhecidas na
Europa. Embora começasse com Aristóteles, Ray ultrapassou-o para elaborar uma
disposição mais satisfatória agrupando as plantas não apenas por
características simples como sementes, mas de acordo com toda a sua estrutura.
Ray também aperfeiçoou a classificação dos animais de Aristóteles, apelando de
novo para as afinidades das formas e, desde então, esta disposição tem-se
revelado útil. Depois disso, Ray estudou os quadrúpedes, as serpentes e fez a
pioneira descrição dos insetos.
A grande
realização de Ray foi a invenção do conceito moderno de “espécie”. O que Newton
fez pelos estudiosos da Física com seus conceitos de gravitação e do movimento,
Ray fez pelos estudiosos da Natureza dando-lhes uma alavanca para um sistema.
Como muitas outras ideias que moldaram o Mundo, seu conceito era bem simples,
mas a sua intuição audaciosa deve ter sido estimulada pelas extensas
observações pessoais de campo. A visita de tantos espécimes diferentes acabou
por lhe sugerir a convivência de um conceito de espécie e, ao contrário de seus
predecessores, Ray descobriu um sistema de classificação que serviu tanto às
plantas quanto aos animais.
Para ele,
uma espécie de planta era um nome para “um conjunto de indivíduos que dão
origem, através da reprodução, a novos indivíduos semelhantes a eles próprios”.
A mesma definição era aplicada aos animais, pois touros e vacas pertenciam à
mesma espécie porque, quando acasalavam, geravam uma criatura como eles
próprios. Ray acreditava que cada espécie estava fixada e não variava ao longo
das gerações, mas à medida que o tempo passou ele verificou que poderiam ser
possíveis mutações insignificantes.
Depois de
Darwin, houve biólogos que criticaram Ray pela sua crença na fixidez das
espécies, proposição que o seu sucessor – Lineu – abraçou com entusiasmo ainda
maior. Mas, no seu tempo, essa insistência de Ray na continuidade das espécies
foi um gigantesco passo à frente e tornaria possível um catálogo de todo o
mundo natural utilizável. Ray foi um dos primeiros a sugerir que os fósseis
encontrados nas montanhas e dentro da terra não eram meros acidentes, mas restos
de criaturas que outrora tinham vivido. E avançou com a possibilidade de muitas
espécies pré-históricas se poderem ter extinguido.
____________________________________________
Nenhum comentário :
Postar um comentário